Não existe nada mais delicioso e surpreendente do que a vida. Você pode impor uma série de limites para se tornar visual e plasticamente perfeito: menos carboidratos e doces, horas e horas fazendo ginástica… Pra quê evitar a churrascaria rodízio se ninguém sabe como será o amanhã? Sem querer agourar os heróis que preferem sacrifícios a um simples equilíbrio, mas e se o andaime da academia despencar justamente quando o sujeito estiver entrando ou saindo?
É, eu sei. Não existem possibilidades palpáveis disso acontecer, e seria uma injustiça enorme se houvesse alguma. Mas a vida não deixa de ser deliciosa e surpreendente, especialmente em ocasiões onde as regras deveriam ser minimamente observadas.
No trânsito, por exemplo. Eu sou daqueles que ligam a seta até quando não tem ninguém para ser avisado. Prefiro reduzir ou até parar o carro só para não disputar com os doidivanas apressados de sempre. E mesmo diante do sinal verde e rodando abaixo da velocidade permitida, posso dar de cara com um caminhão cruzando no vermelho. De que adianta tanto cuidado se somos obrigados a esbarrar num bocó desse naipe?
Os freios funcionaram, mas o espaço era curto. Dos males, o menor: foi a frente do Marmoturbo que encontrou a lateral do caminhão, e não o contrário. Nem precisei repreender ao cururu: as testemunhas que estavam ali trataram de proclamar o discurso do motorista defensivo. Munido da minha paciência de praxe, além de papel e caneta, anotei a placa da surpresa ambulante e disse poucas palavras ao motorista.
“Fico feliz que o senhor não se machucou. Já anotei sua placa, é o suficiente para registrar a ocorrência e avisar a seguradora. Se quiser, podemos ir juntos ao distrito e fazer um acordo bacana. A gente deixa essas duas latas velhas na mesma oficina e divide o valor da franquia. Vai sair mais barato que o seu amigo funileiro”.
Tanto as testemunhas quanto o inútil agente de trânsito (que só apareceu para dar um alô) já tinham ido embora quando o motorista do caminhão veio conversar com mais calma. Quer dizer, “calma” não era exatamente o que demonstrava o tiozinho. Apresentou-se como Antônio, aparentava uns quarenta anos, tremia feito vara verde, sentia-se nitidamente envergonhado.
“Moço, eu não posso registrar uma ocorrência”, revelou, enquanto mostrava uma habilitação classe AB (não serve para caminhões) e um documento muito atrasado de seu ganha-pão. “Eu posso perder o meu caminhão, e é a única coisa que eu tenho pra sustentar meus filhos”, implorou. Pediu desculpas mais de uma vez por ter cochilado ao volante, garantiu que pagaria o valor da franquia e ligou para casa, usando o meu celular, contando a história toda para a esposa.
Nesse exato momento, surgiu ao meu lado um dos muitos conselheiros invisíveis. Iguais aqueles que recomendam dietas, academias, roupas de grife… São meio egoístas, não ligam muito para as pessoas ao redor deles.
“Viu o que esse idiota fez com o seu carro? Era novinho! Todo mundo achava lindo, as mulheres estavam caidinhas por ele – ficariam mais entusiasmadas se essa sua pelanca abdominal sumisse… Não importa. O que quero dizer é que por causa desse feirante idiota, você vai ter uma dor de cabeça desnecessária… E ele nem tem habilitação! É um perigo para a sociedade! Denuncie esse babaca e livre a cidade de um problema! Ah, mas eu sei o que você está pensando… Quer dar uma chance ao imbecil! Éééé… Esse papinho de família desamparada é paia! Se você ouvir essa conversinha, vai ser um ingênuo e um palerma!”
Não pensei duas vezes: chutei meu conselheiro invisível e disse: “vá embora antes do guincho aparecer, e fique tranquilo. Ninguém vai saber o que você fez”. Mesmo com problemas na embreagem e sem a lanterna da direita, lá foi ele. E nem a polícia ou a seguradora souberam da existência dele.
Dias depois, liguei para o “seu” Antônio. Dona Maria, sua esposa, atendeu e agradeceu a minha generosidade. Não sei se eles vão pagar alguma coisa, mas deixei o recado: “a senhora é quem manda na casa, então não deixe o seu Antônio sair para a rua todo errado. A chance da vítima ser boazinha outra vez é a mesma de um andaime cair na cabeça dele”.
nossa,
lindo texto.
Esse negócio que a gente cria de não acreditar nunca no outro, partindo sempre do príncípio de que o mundo é sacana e a gente tem só é que se proteger, é muito triste. Como a vida é curta, improvável e incerta, melhor mesmo é chutar os conselheiros invisíveis e dar um crédito à humanidade, porque senão eu fico achando que até viver passa a ser um negócio chato, de tão desconfiado.
bacana. Eu acho que ele vai pagar.
Rapá… a chance do Seu Antônio levar um andaime na cabeça é 10 mil vezes maior do que a de ele encontrar outra pessoa que seja tão legal assim. Principalmente porque o povo enlouquece quando vê seu próprio carro danificado… talvez se ele atropelar a esposa de alguém receba maior compreensão do que se estragar outro carro, heheehe…
Puxa, então o mundo ainda não desandou de vez para o cinismo total e generalizado?
Há ainda que não veja maldade em tudo e em todos? Caraca, véio. Isto é uma surpresa. Grata surpresa.
risos…Caprichadíssimo o texto! E muito interessante tua história, além de engraçada… Viciei nos teus textos, moço!
André, eu sei que a sua intenção foi boa, mas acho que você cometeu um erro.
Além da sua indenização, a segurança de outras pessoas também estão em jogo nesse episódio.
Imagine quantas vezes o “seu” Antônio já deve ter aprontado com esse caminhãozinho por aí. Agora imagine quantas ele pode aprontar porque você simplesmente aceitou ser cúmplice dele.
Desta vez, vc acertou a lateral dele e não se machucou, porque estava devagar. E se vc estivesse um pouco mais rápido? E se seu carro não fosse tão novo e seguro. Se fosse uma Kombi, por exemplo?
E se, na batida, ele acertasse a lateral do seu carro? Poderia machucar você ou um amigo seu. Poderia ser sua namorada, sua esposa, seu filho. Pior: E se, para desviar do caminhão dele, você acabasse atropelando alguém?
Se eu te conheço, você deve estar dizendo “Tá, Adilson, mas não foi nada disso que aconteceu”. Ok, desta vez não foi mesmo. Mas o que a “deliciosa” imprevisibilidade da vida guarda para a próxima vítima do “seu” Antônio. Aliás, dirigindo desse jeito, ele mesmo pode se machucar bastante.
Admito que estou exagerando em algumas situações, mas faço isso apenas pelo caráter didático da minha argumentação. Nada indica que o “seu” Antônio seja o caminhoneiro assassino daquele filme “Encurralado”. Mas é importante frisar que as leis de trânsito, por piores que sejam, foram criadas justamente para diminuir esse tipo de ocorrência.
Provavelmente eu também ficaria de coração mole com a história do “eu tenho cinco criancinhas pra criar”. Mas vamos pensar bem: você acredita mesmo que ajudou o “seu” Antônio, a família dele e as outras pessoas que vivem nessa cidade?
André, eu mesmo já me beneficiei de seus favores e, sem querer, te meti numa enrascada por causa disso. Será que você não aprendeu nada com aquela lição? Eu aprendi.
Vc realmente é muito especial, sei que vc tem o coração enorme mas achei a sua atitude incrível! bjo