Carro reserva

Sei que não devia, mas sou um sujeito apaixonado pelas minhas coisinhas palpáveis. Sigo o coro de um grande amigo, que também costuma dar nome aos objetos – assim, eles se tornam seres mais “conscientes”, mais “vivos”… Em muitos casos, considero seres inanimados como parte da família. O Marmoturbo, meu carrinho de tantas aventuras, é um bom exemplo: sou tão apegado a ele que, na última troca de carro, fiz questão de ficar com a mesma cor e mesmo modelo do antigo…

O fim de 2005, no entanto, me separou deste grande confidente. Tudo por culpa de um maldito Ecosport, que parou de repente pouco antes do túnel do Anhangabaú. Choque inevitável. Uma véia cegueta não percebeu a palhaçada e afundou a traseira do pobre Marmoturbo. E ainda ficou bradando: “a culpa é sua!!!”. Ora, francamente.

Mas enfim. Por conta desse acidente fora do script, o Marmoturbo ficou um bom tempo no funileiro. Para amenizar o sofrimento de sua ausência, a seguradora me ofereceu um carro reserva por dez dias. Para mim, a solução não era das mais interessantes: de que vale um novo companheiro, por mais interessante e útil que possa ser, se a sua companhia durar apenas dez dias?

E lá estava. Vinha de longe: Belo Horizonte – se bem que deve ter ficado lá apenas o suficiente para ganhar a placa. Seu tamanho era bem compacto, mas tinha curvas e linhas bastante atraentes. Reluzia como prata, mas notava-se diferenças graças a sua exposição diária às interpéries do tempo. E desde o primeiro momento, parecia me dizer: eu gosto de você.

Nosso primeiro contato não foi lá muito amigável. Tinha um jeito complexo, difícil de se lidar. Especialmente no pedal da embreagem, muito alto. Trancos e engasgadas nos primeiros metros. Sem apagar um instante sequer, mostrava-se com total disposição para que eu me acostumasse com a sua presença. Começou a cantar baixinho… Sim, o rádio era muito simples, mas resolvia.

Ficamos pouco tempo juntos, mas o suficiente para irmos até minha casa todos os dias – como eu moro longe, tínhamos tempo para nos conhecermos melhor – embora eu continuasse com o tratamento à distância, sem tanto envolvimento. Em todas as noites, nem um desejo de boa noite: o sereno lhe fazia companhia, do lado de fora da casa.

No último final de semana, um compromisso inadiável me levou para outra cidade. Tive que deixar minha nova companhia em paz, num lugar amplo e confortável. Escolhi o estacionamento ao lado do metrô Tietê, um dos mais baratos da cidade. Ficamos afastados desde a tarde de sexta até a noite de segunda. E por mais que estivesse claro para mim o quanto aquele contato era passageiro, não escondi o sorriso quando nos reencontramos.

Continuava radiante, com suas curvas apaixonantes. Abri a porta, sentei no banco do motorista e disse: “oi, senti sua falta”. Os vidros se fecharam, o rádio ligou baixinho e o ar condicionado disparou, como se me dissesse “eu também, me abraça”. E fomos para casa juntos, pela última vez. Em silêncio, aproveitando cada segundo daquela despedida.

Já na locadora, no dia seguinte, respirei fundo na hora de entregar as chaves para o balconista. “Então, gostou do carro, senhor?”, perguntou. Disse que tinha adorado, e que iria sentir saudades. “Ah, isso é normal. Todos dizem a mesma coisa, mas no fundo sabem que é uma relação passageira. Amanhã outra pessoa sentirá o mesmo por ele, enquanto você seguirá sua vida. Acontece exatamente assim com todos os clientes”.

Arregalei os olhos e me questionei: ao contrário de mim, uma pedra, teria sorte o meu carro reserva, já que não passa de um objeto inanimado e não precisa de sentimento algum para cumprir sua missão?

(Postado em 05/03/2006, tempo suficiente para trocar – e bater – mais um carro)

Comentários em blogs: ainda existem? (5)

  1. Eu sei bem o que é isso. Estou ainda naquela paixão desenfreada do primeiro mês com meu Benjamin Bartolomeu.

    E estou quase chorando por ele estar estatelado numa mecânica agora.

    E pior que minha seguradora não cobre pane mecânica. E eu não tenho direito a carro reserva…

    VOLTA, BARTOLOMEU!!

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