Eu já não lembro mais a sensação. Mas se eu fechar os olhos, consigo imaginar uma sala apinhada de gente jovem e inteligente relacionando os tópicos da aula com situações cotidianas, aquele livro ou série que estava no topo da agenda na semana.
Abro os olhos de novo. Meus filhos sobem em cima de mim. Eles não vão para a escola esta semana, com febre e nariz entupido. Tento lembrar o que estava fazendo antes, se era o momento de voltar ao computador para se virar no home office ou levar o smartphone para a cozinha. Ouço o som da TV: é aquele filme do streaming que já vimos umas treze vezes essa semana.
Respiro fundo. Fecho os olhos de novo e estou caminhando. Andando de metrô. Entrando em alguma faculdade. Dando “boa tarde” ao pessoal da sala dos professores. Até 13 de março de 2020, dia que sepultou o mundo como conhecíamos, era a minha rotina, de segunda a sexta.
Outra vez o menino constipado, já sem febre, sobe no meu cangote para pular na minha barriga. Minha cabeça, cansada, se apóia no sofá. Só as crianças, ao que parece, não estão exaustas.
A turma do coach curte uma resiliência. Toma para si atributos da personagem Rocky Balboa, mergulha no storytelling corporativo e celebra, naquela rede social de arrumar emprego, sua incrível capacidade de ser socado no ringue da vida e tentar encontrar, mesmo desnorteado e sangrando, algo próximo de “era aqui o lugar onde estava antes, daqui posso dar mais um passo”.
Agora levei uma pancada de cada filho. Estão brincando de super heróis e eu sou algum tipo de vilão involuntário. “É só mais um soco, seja resiliente”, diria a turma do coach.
Não, meus consagrados. A lição que aprendi nesses dois anos pandêmicos foi: quando se está soterrado, qualquer movimento te faz afundar mais. Adaptar e voltar ao lugar significa sair do atoleiro a cada período do dia. Cansa. Perturba.
Em 13 de março de 2020 eu era professor universitário. Era algo que, diziam, eu era relativamente capaz de fazer. De certa forma, lidava há uns quinze anos com um processo viciante: planejar uma sequência de trabalho, estruturar objetivos e relacioná-los a atividades, estar alinhado às pesquisas mais recentes da área. A aula propriamente dita era só o desfecho – ironicamente, o salário dos professores, calculado por hora/aula, leva em conta apenas o tempo em sala. Enfim.
Ainda sobravam uns dois ou três neurônios para escrever bobagem, sair para visitar os amigos, ir ao cinema, viajar com a família. Ver gente.
Era um milagre. Eu nem sei como esse texto aqui conseguiu nascer. Sinto que desaprendi a escrever. Aliás, a pia está abarrotada com a louça do almoço; eu deveria cuidar disso ao invés de resgatar a vontade de dialogar comigo mesmo, descrever o cotidiano, refletir… Essas coisas de quem já está com a vida ganha.
(Ouvi isso uma vez da turma do coach).
Eu não era um professor universitário típico. Meu foco sempre esteve na compreensão e encadeamento das disciplinas, no relacionamento com a turma. Nunca fui tarado pelo Lattes. Sempre tive preguiça com os academicismos que exigem aproximação com “igrejinhas de pesquisa” e “panelinhas ególatras no banho-maria”. As grandes ideias para desenvolvimento de artigos (muitas caíram no meu colo graças ao olhar brilhante do meu orientador) estão até hoje nos meus rascunhos, em busca da estrutura perfeita (um dos mais famosos tipos de autossabotagem).
Isso porque, no fundo, era interessante manter um pé na vida acadêmica e outro no mercado, praticamente um “operário underground” que mistura produção de conteúdo e desenvolvimento tecnológico. A turma do coach vai me cercar outra vez para dizer que não dá para se equilibrar em duas canoas. Com alguma dose de razão: a cada final de semestre, apesar das demissões, fusões e outros quetais nas universidades privadas, eu não precisava me preocupar com a minha não-escolha.
Eu não entro em uma sala de aula presencial desde 13 de março de 2020. Foi também o último dia de rotina escolar de duas crianças que, agora e talvez por um bom tempo, precisam recuperar parte de seu desenvolvimento após longas semanas de clausura. Daquele final de semana em diante, minha cabeça configurou um estado de entropia: “meu único objetivo, nos próximos dias, é sobreviver”.
Resumindo? Arremedo de home office. Bombardeio midiático do medo. Círculos sociais desfeitos. Covid quântica, aquela que “parece que está mas talvez não seja”. Gente sem máscara. Gente sem teste. Gente querida sendo entubada. Alguns sem deixar o hospital com vida.
Era desgastante para mim. Mas foi fichinha se comparado com Rina, que batalhava em sua transição de carreira se aproximando de gestantes e puérperas, ficou sem qualquer perspectiva de carreira. Segurou a marimba e levou toda sorte de baquetadas na cabeça enquanto eu me virava para manter a carga horária, intensa para uma rotina presencial mas impraticável num apartamento.
Assumo, inclusive, que não fiz o bastante para quebrar o ciclo que culmina com o aumento da carga mental das mães, seguramente no topo da lista das maiores vítimas entre quem escapou da pandemia. Sei que só um pedido de desculpas é pouco. Terminar aqui e cuidar da louça também.
Mas enfim. Não foi exatamente por solidariedade ao caos da rotina doméstica… De toda forma, boa parte das instituições de ensino privado resolveram o meu problema. Não fui o único. Em dois anos, ouço relato de colegas que conseguiram ficar, que voltaram, que ainda acreditam na importância da educação, que se perguntam “como é que chegamos nessa terra arrasada onde os sobreviventes recebem uma mariola por hora”.
Eu não voltei. Nem todos voltaram. Aliás, é importante lembrar: aquele lugar, igual a muitos outros, não existe mais.
Finalmente, 13 de março de 2022. Apesar das crises emocionais, dos rombos orçamentários, das narinas cobertas por catota esverdeada e de toda essa gente acéfala que se esforçou para nos atrasar, chegamos. Todas as doses de vacina garantidas. Empregos cujos desafios cotidianos e relações interpessoais ajudam a distrair a mente. Uma ou outra forma de reinventar o que somos.
Ainda sou acordado repentinamente por alguma criança exigindo atenção e leite, mas já dá para isolar um neurônio para trabalhar em formas de “abandonar o modo sobrevivência”. Se eu fechar os olhos, consigo me ver além da sala de aula. Ou em uma sala com Rina, as crianças e alguns parentes e amigos e longas tardes de conversa. Ou em uma sala de embarque rumo ao futuro.
Espero que você também (mesmo sendo da turma do coach, vai).
Eu comento! E vou compartilhar no Twitter.
Como amo ler seus textos. Um imenso abraço pra você!
Adorei o texto André e parabéns adiantado, bjs!
Peguei minha máquina do tempo e viajei 20 anos no passado pra comentar no seu blog o seguinte: Troque a turma do coach pela turma do couch. #fikdik