Podemos definir “viver”, resumidamente, como a arte de driblar o tempo. Passamos boa parte dos nossos dias equacionando afazeres em nossa agenda, ocupando-nos enquanto o corpo não pede descanso ou comida. Todos estes apontamentos – inclusive comer, dormir e qualquer outro relacionado a nossa sobrevivência – servem para que, ao final de um ciclo, possamos comemorar resultados, planejar novas metas, relacionarmo-nos com quem gostamos… Tanto o que realizamos quanto nossos planos riscados num caderno, seja sozinho ou acompanhado, pra viagem ou pra comer agora, tem como único propósito dar sentido a uma existência cuja única certeza é: um dia vamos morrer.
Não é tão óbvio quanto parece. Se realmente pensássemos “tanto faz qual decisão tomar, nosso destino será o mesmo”, por que ainda existem pessoas que dirigem suas vidas como se estivessem numa estrada de mão dupla, ignorando a linha contínua que proíbe ultrapassagens? Ou pior: seguem em terceira marcha, como se não estivessem aí com os que correm atrás, preocupados com o relógio – na realidade, não há muita diferença entre quem convencionou seguir os ponteiros a cada segundo e quem o ignora totalmente.
Enfim, se a estrada for entre o lugar onde você está agora e uma certa cidade no extremo sul do Brasil, pode ser que suas dúvidas existenciais não incomodem. Ou apareçam apenas ao passar pela antiga Vila Arthur Lange. Vem a surpresa ao notar que aquele lugar, antigo distrito de Pelotas com cheiro tão peculiar (acho que é daquela “fábrica de couros”, nunca chequei), tornou-se um município, a “capital nacional da pimenta vermelha”… Então, quando menos se espera, as lembranças de uma época onde as únicas preocupações eram visitar os parentes durante um mês inteiro se misturam aos dias loucos de hoje, carregados de tarefas e experiências. O tempo driblou você.
Finalmente, o trevo do Fragata, a antiga Cohab, a mesma rua que outrora vivia apinhada de crianças que celebravam minha chegada para mais uma temporada de aventuras. Estava deserta. Minha visão infantil, a de que estava em uma “cidade cenográfica da minha imaginação” deixou de ser fantasia para se mostrar com dureza. Duas ou três pessoas que restaram por ali, após a morte da minha avó, reforçam a idéia de que bastam sete dias, e não mais quarenta, para dar um alô a minha querência. Descubro que um dos primos que costumava adotar como “sobrinho” nas brincadeiras de bola e nas fugas ao Cine Capitólio – onde hoje funciona um estacionamento – vai se casar. Dois a zero para o tempo. A futura esposa dele não tardou em convidar para a festança, mas não antes de acertar o gol num chutaço do meio de campo.
– Falando em casamento, tu sabe quem eu encontro todo dia e que sempre lembra de ti? A Íris. Aí eu disse que tu vinha pra cá essa semana ela te mandou um beijo.
Não era uma recordação simplinha como deixei transparecer a minha “futura prima”. Não tinha noticias da Íris desde o verão de 1998, quando recebi das mãos dela a declaração mais apaixonada que já tinha visto até então. Uma carta que marcou profundamente a minha existência por uma razão óbvia: mesmo sendo ela uma gauchinha linda e doce, daquelas que dá vontade de ver muitas vezes, sumiu nesses mais de dez anos. Acredito que todo mundo guarde dentro de si algum tipo de pergunta sem resposta, algo como: e se eu tivesse escolhido outro caminho naquela etrada, alguns quilômetros atrás, como teria sido?
Pessoalmente, gosto da idéia de deixar essa questão aberta para sempre: prefiro me preocupar com o caminhão de novelos que já desenrolo ao lado da minha eterna paquerinha. Mas para não parecer deselegante, arrumei um pedaço de papel e rabisquei meu telefone celular, seguido da frase “fico até terça”.
– Ah. Lembro dela, sim. Claro. Ela é prima daquela outra moça que morava aqui do lado. Mande outro beijo e entregue isso a ela.
Quando se está num lugar impregnado de histórias, meu maior desejo é ficar longe das conexões tecnológicas, como televisão e internet. Essas interfaces que reproduzem aquilo que chamo “mundo real”. Mas meu conto de fadas em Pelotas me aguardava, com seus vários castelos: as casas das dezenas de irmãos dos meus pais, muitas ainda encravadas num cantinho qualquer de um mapa – que traz mais municípios que, até esses dias, não existiam. São eles os reis e rainhas de seus territórios, sucessores de antigos monarcas e que, diante do inevitável envelhecimento, abrem caminho para os novos príncipes e princesas do reino. Tem até caçador! Ou melhor, pescadores, desde os mais experientes com suas tarrafas e linhadas à beira do açude, até a garotada encantada ao ver a bóia afundar e revelar, após um estirão com o caniço, um lambari fisgado no anzol. Tem ceias fartas, com carne de ovelha bem gorda, salada de frutas, pão de teta com torresmo e um ou outro bichinho que caiu no pote de chimia após sobrevoar a lâmpada.
Pena que são sete dias, e não quarenta. Chegou a terça, e as malas já estavam fechadas aguardando o caminho para o Embaixador das quatro da tarde, rumo a Porto Alegre. Enfim, como sabem, o imprevisível só acontece em histórias de ficção ou nas novelas do Aguinaldo Silva. Mesmo em um conto de fadas, não sairia dali sem receber uma mensagem em meu celular. “Saio para almoçar na meia hora. Pode vir adiante do Hotel Curi?”
Pensei na surra que levaria da minha eterna paquerinha. Mas também pensei que, se ela estivesse no meu lugar, faria a mesma coisa: atenderia ao chamado de sua curiosidade. Ou, em detalhes, responderia “sim, até já!”, pegaria o próximo Cohab Rodoviária via Colégio Pelotense e desceria um pouco antes do abrigo, na Deodoro. Ainda que, para não correr o risco de se perder no horário, usasse a mesma bermuda batida de sempre, uma camiseta suada, chinelo de dedos e minha aliança na mão direita – ainda que não tenha nada além de uma paquerinha – acho que já disse isso hoje.
Enfim, ela também não estava nada radiante, como naquele reveillon de 1998. Um rabo-de-cavalo e algumas rugas na região dos olhos não valorizavam seus cabelos claros, muito menos os olhos brilhantes. O uniforme da loja também não combinava com o sorriso, metalizado graças a um aparelho de detalhes azulados. Nosso abraço seguido de três beijinhos na face lembrou o de um encontro de dois parentes que tínham se visto esses dias. Não disse muita coisa, além de “oi, guria, quanto tempo”.
– Mas você, hein? Tem o dom de me pegar de relance, indo embora de Pelotas! Francamente!
– Pelo visto, você continua engraçadinho como sempre… Mas está bem mais gordo!
Isso lá é coisa que se diga!? Ainda mais com um corpo esbelto daqueles… Pedi a ela para indicar um lugar bacana e, enquanto caminhávamos e falavamos de amenidades – carreira na área de comunicação, carência de empregos na área agropecuária, notícias da família, dos vizinhos, aquela coisa toda, finalmente entramos no assunto.
– A Iolanda, que vai se casar com seu primo, me disse que você está noivo…
– É verdade! Ainda estamos fazendo um “test drive”, não decidimos nada ainda. Tenho meus planos pessoais, e ela também. Um monte, aliás. Um dia ela sonha em casar, no outro ela é gerente de um portal de blogs, doutoranda na França, escritora de novelas ou livros infantis, madame morando em Salvador… Daqui a pouco, inventa de virar carnavalesca no Rio. Mas o tempo é sábio, né? Vamos ver o que acontece.
– Ah, já tive minha fase de construir e desconstruir coisas, isso passa. E tenho certeza de que, no fundo, ela quer ficar contigo. Mas essa guria é de São Paulo mesmo?
– Ih! Nem te conto… Aliás, eu cheguei a te dizer alguma vez que, depois daquela vizinha da Verônica que eu gostava ter arrumado um namorado antes de eu reaparecer na Semana Santa, nunca mais namoraria com alguém que morasse longe? Pois é. Viver é tentar driblar o tempo, mas…
Continuei falando da minha paquerinha, de alguns dos nossos altos e baixos. Até que tratei de inverter as falas.
– Vou te dizer. Fico pensando se viver casado com alguém é tão complicado quanto parece ser, mesmo que agora eu não consiga conviver direito… O que você acha disso?
– Ah, Dé, não sou a melhor pessoa pra te dizer…
O sorriso deu lugar a uma expressão de dor, como se alguém tivesse morrido. Só então soube que a Íris tinha acabado de se separar. Ainda não compreendia como um relcionamento de doze anos poderia acabar com tanta facilidade.
– Depois que tu me escreveu daquela vez, dava alegria viver. Daí que eu conheci o Celso, um guri que sempre foi muito bom pra mim, sabe? A gente se casou bem depressa, e a gente nunca brigava. Mas daí, no meio do ano passado, eu e ele começamos a discutir mais por qualquer coisinha… Então, de repente, ele veio me dizer que precisava de um tempo!
– Cacetada! Mas ele já te conhecia, vocês moravam juntos, tinham planos… Tempo pra quê?
– Pra ti ver… Eu perguntei pra ele se era alguma coisa que eu podia mudar em mim, pra agradar ou resolver, se tinha a ver com nossa decisão de não termos filhos, com o aluguel da casa, com meus plantões na loja… Mas bah, ele me disse que eu nao podia fazer nada, que vivia infeliz e precisava encontrar um rumo.
– Sim, mas você deu tempo pra ele? Sabe que a cabeça da gente pode nos pregar peças… Se esse cururu gostava mesmo de você, colocaria na balança toda a história, o que vocês construíram juntos…
– Eu dei tempo, sim. Vou te dizer que fiquei tri calma, pensei igualzinho a ti. O Celso iria se dar conta que eu também abri mão de muita coisa na vida pra ficar com ele, e que jogar fora nossa convivência era uma decisão muito forte. Eu pensava mesmo que a gente se amava, mas quando ele me disse que era pra valer, e que iria morar sozinho em Bagé, eu desabei. Fiquei sem entender o que eu tinha feito.
– Mmmhhh…. Sabe o que eu acho, Íris? Qualquer relação, mesmo cercada de bons sentimentos e desejos, é uma aposta. Você tem a ilusão de que está tudo sob controle, quando na realidade a cabeça do outro é uma gruta escura e insondável. Nem nós mesmos sabemos do que somos capazes, como vamos reagir diante do inesperado. Se não conseguimos ter controle das nossas próprias coisas, e é só isso que podemos fazer, por que perder tempo com as maluquices de uma pessoa nitidamente egoísta, sem paciência com as imperfeições humanas, que são inevitáveis, e incapaz de apostar na felicidade? Quer saber? Ainda bem que você só perdeu uns dez anos ao lado dele.
Ela sorriu e, preocupada com a volta ao trabalho, retrucou, serena.
– Eu não concordo contigo. Amar alguém, respeitar, valorizar, torcer para que essa pessoa consiga o que quer, discordar sem magoar, abraçar e beijar… Isso náo é apostar. É só querer. E eu fico tão feliz em saber que você encontrou alguém que quer tanto fazer isso contigo… Tu sabe o quanto merece isso, né?
Minha curiosidade estava satisfeita. Dali em diante, estávamos, Íris e eu, a mercê de uma situação em que qualquer discurso capaz de avançar no debate representassem uma sequência de bifurcações, saídas, desvios, entre outras escolhas intrincadas em uma auto-estrada veloz porém sem sinalização. Acho que, mesmo contando nos dedos nossos encontros, ela já esperava a mesma coerência da última vez.
– Obrigado, de verdade. O melhor é quando esse querer não se baseia só em uma historinha de verão, mas com todas as incertezas e desafios que isso traz. É aquela história, né? Seria ótimo se o medo jamais pudesse vencer o amor. Também torço para que seu Celso arrume coragem. Ou que você se arrume, já que não deve faltar gente encantada por aqui.
O relógio, sempre ele, alertava: “seu ônibus vai sair”.
– Ei, corre lá, não quero te atrasar. Eu também preciso embarcar daqui a pouco.
Era a nossa deixa para levantar da mesa, pagar a conta e dizer “até um dia”, com um abraço comprido de despedida. Vou dizer: a sensação não era como a lembrança daquelas férias. Foi bom, mas diferente. Faz sentido: estávamos quase no mesmo lugar, mas depois de ter percorrido longos trechos em aclive e declive.
Éramos os mesmos, mas diferentes. O tempo driblou a gente.
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Belo texto.Deu um pouco de melancolia,mas nada trágico.
A arte de contar histórias sabendo terminá-las com sentido: isso, você domina, André.
Sim, um ótimo texto. Mas é bom a gente ter cuidado com as narrativas que criamos para nós mesmos… acho que estou falando isso pra mim mesma também. E, sim, os comentários dos tapetes chegam no meu e-mail. 🙂
Acho que a Íris é a minha preferida.