Recife (PE) – Provavelmente você deve lembrar do tio Abdul, personagem de Sebastião Vasconcelos na novela O Clone, de 2002. Era um sujeito ranzinza e extremamente ortodoxo: tudo devia ser dito e feito de acordo com as sagradas escrituras do Alcorão. Do contrário, evocava chibatadas ou o calor do mármore do inferno. O dedo era apontado especialmente para as mulheres espetaculosas, que faziam exposição exagerada de suas figuras.
Lógico que era uma caricatura, mas tem algo no discurso do tio Abdul que faz sentido: o “espetaculoso”.
O termo “espetacularização” voltou à baila nesta semana, quando o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, definiu assim a prisão do banqueiro Daniel Dantas, do investidor Naji Nahas e do ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta. Todos com algemas e, no caso do último, pijamas.
Diferente do ministro, eu fiquei feliz ao ver tanta gente graúda indo parar na cadeia – sensação que passou ao saber que Mendes o soltou, por duas vezes. Mas enfim, quando vi as imagens no Bom Dia Brasil e todo o estardalhaço na tal “operação solta-e-agarra”, questionei: será mesmo que essa ação vai resultar em desdobramentos verdadeiros ou foi só um show para brasileiro ver e ter orgulho de sua polícia?
Falando nela, a semana também nos trouxe um caso em que policiais ignoraram a máxima de que “só podem usar armas de fogo quando suas vidas estão em risco”. Aqui, a “espetacularização” não veio exatamente dos PMs despreparados – não consigo pensar que essa trupe mal paga tenha pensado em aparecer, mostrar serviço. Quem se presta a esse papel são seus chefes, ao pedirem desculpas e garantirem melhorias – que provavelmente só existirão enquanto existir alguma emissora de TV convidada para mostrar.
Tio Abdul tem motivos de sobra para continuar pra la de Marrakech. No lado de cá, o mundo das garotas que, para brilharem, basta ser “melancia”, está cada vez mais espetaculoso. Eu não sou tão intransigente quanto o personagem, até porque faço parte do lado da mídia, esse que empacota os fatos e os entrega à sociedade. O problema, como nos lembra Isabela, está na tentação em transformar isso em um circo em busca de audiência.
Entre jornalistas, a linha que separa “interesse público” e “interesse do público” é tênue, o debate é antigo e as respostas teimam em não se fixar. Fora dele, a espetacularização é ainda mais escancarada. O que dizer de uma dupla passando gel na cabeça do Wagner Moura, só para arrancar algumas risadas num programa de humor? O próprio ator definiu a bobagem como “espetacularização da babaquice”.
As vezes, tenho a impressão de que os mentores do show sabem que a maior parte dos espectadores são limitados, não são capazes de perceber o quanto suas vidas se esvaziam ao trocar reflexões por puro divertimento. Assim, se aproveitam dessa postura para reforçar a alienação. E ao chamar-nos de idiotas, chegam ao ponto de faltar com o respeito ao dizer que “não há problema em exposições exageradas, se não gostou mude de canal”
É lógico que eles não vão mudar. A não ser que, um dia, saibam raciocinar, viver suas próprias vidas e ignorar os canais “espetacularizadores”, espalhados pela TV ou mesmo na Internet. É, Tio Abdul, não é brinquedo não.
E a Tina, nossa visitante mais assídua, se foi. A Lu e o Doni já disseram tudo. O resto é espetacularização.
“… vidas que se esvaziam ao trocar reflexões por puro divertimento.” Enquanto os do STF se divertem, nos nos esvaziamos de raiva. Sim, é melhor não guardar rancor no coração e pensar que as oligarquias que dominam o Brasil começaram cedo a sua tarefa, lá por 1500. Por isso é lícito e legítimo que elas continuem tendo direito e assento. Não vamos ser nós, novatos, a ter direito de lhes bradar lições de moral.