Sobre a Associação dos Indignados Temporários

No começo do ano, descobri um excêntrico grupo de pessoas. Dezenas delas, que se reúnem num canto da cidade para compartilhar suas impressões cotidianas. Na minha primeira visita, o bafafá era grande.

– Gente, não me conformo com essa cratera em Pinheiros. Uma barbaridade.
– É impressionante. Estão gastando nosso dinheiro com obras de segunda mão.
– E pior: só vão entregar essa obra na véspera da eleição… Vê se pode!
– Onde é que esse país vai parar, Deus do céu? E as famílias desabrigadas? Pobre gente.
– É, a minha ex-namorada trabalha no prédio da Abril, ali na frente…
– Sério? Puxa, mas ela está bem?
– Infelizmente. Devia ter caído no buraco, aquela vagabunda…
– É isso aí. Morte às ex-namoradas! Iiiiééééhhh!!!

Fiquei com a impressão de ter ouvido o tal grito estridente até o encontro seguinte, em fevereiro.

– Gente, de verdade, não tem como não ficar indignado com essa história do João Hélio.
– Impressionante, moçada. A violência chegou a um ponto em que nem dá vontade de sair pra rua.
– E quer saber mais? Qualquer um de nós está sujeito a um sequestro-relâmpago.
– Ai, meu Deus do céu… Onde é que esse país vai parar, hein? Francamente? E a família do menino…
– Cara, na boa. Por que é que não pegam essa gente e…
– Nem precisa completar. Deviam fazer isso mesmo, aqueles vagabundos.
– É isso aí. Morte aos bandidos vagabundos!!! Iiiiééééhhh!!!

Ainda com medo daquela segunda manifestação efusiva, preferi voltar só em agosto.

– Olha, gente… Eu não em conformo com essa palhaçada que provocou o acidente com o avião da TAM.
– Impressionante, né? Essa Infraero tá uma tremenda esculhambação.
– Vou mais longe: nunca mais coloco os pés naquela espelunca de aeroporto.
– Mas onde é que esse mundo vai parar, minha Nossa Senhora… E as famílias… Deus nos defenda. As famílias!!!
– Meu, deviam privatizar toda essa estrutura e mandar embora aqueles controladores incompetentes.
– Verdade. Podiam mandar embora todos esses incompetentes que atravancam nossa aviação.
– Deviam mandar eles é pra outro lugar!!!
– Issaê. Morte aos burocratas atrasados!!! Iiiiééééhhh!!!

Perdi o encontro de setembro, mas em outubro eles continuavam repercutindo o mesmo assunto.

– Moçada, ainda não consegui engolir… Como é que aqueles pilantras absolveram o Renan? Me diz!
– Definitivamente, não existem mais políticos de caráter naquele congresso…
– Mas onde é que esse mundo vai parar, Deus do céu… Enquanto isso, tantas famílias passando fome, na miséria…
– Então, lembra da minha ex-namorada, aquela da Abril? então, ela se mudou pra Brasília.
– Nossa, mas foi fazer o quê? Trabalhar?
– Que nada. Ela quer é seguir os passos da ex-jornalista e se dar bem lá, aquela vaca.
– Muito bem. Morte aos ladrões de dinheiro público e as safadas!!! Iiiiééééhhh!!!

Enfim, essa semana o pessoal marcou o penúltimo encontro do ano.

– Olha, patota, estou enojado com a pobre moça do Pará, enclausurada com um bando de selvagens em uma cela.
– Ah, mas aquilo é uma falta de respeito ao ser humano. Então nos transformamos em animais agora? Que é isso.
– Jesus amado… Mas onde vamos parar com essa pouca vergonha??? Ai, nem quero pensar na família daquela jovem… A família, Deus do céu!!!

Enfim, depois de quase um ano frequentando a associação, decidi levantar a mão, antes que começassem a gritar e falar em matar alguém.

– Pois é, turma. É uma inversão de valores, como foi com o João Hélio, lembram?

Silêncio na sala. Até que um deles pergunta:

– Quem?

Estranhei aquela pausa sepulcral, mas tratei de refrescar a memória deles.

– O menino, que foi arrastado pelas ruas do Rio… Ah, foi no começo do ano, lembram?
– Aaaaaahhhh – responderam, em coro.
– Mas isso não é exclusividade nossa. Tão chocante é a repressão aos monges do Mianmar, um país em estado permanente de tensão…

Novo siléncio. A mesma voz repetiu a pergunta.

– Quem?
– Puxa, gente, a antiga Birmânia, os monges, os valores democráticos… Ah, querem saber? Essa turma que não toma atitudes proativas para a manutenção do que realmente importa em nossas vidas, e que perdem um tempo valioso num ritual catártico e totalmente desnecessário não valem nada. São todos uns pulhas.
– Isso mesmo!!! Morte a todos esses pulhas. IIIIIÉÉÉÉÉÉÉHHHHHHH!!!!

Comentários em blogs: ainda existem? (6)

  1. Muito bem bolado… seria interessante agora que alguém adaptasse a idéia de acordo com as temporárias indignações dos blogueiros, por exemplo… de janeiro pra cá, será que as pessoas ainda lembram do que aconteceu (e indignou) toda a massa dos blogs?

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