Quilômetro 666

Bem que poderia ter sido uma sexta-feira 13, como esta. Mas foi em uma quinta-feira qualquer de fevereiro – o que não isenta a responsabilidade dos tais números cabalísticos nessas histórias definidas pela razão simplesmente por “coincidência”.

A tarde prosseguia feliz, afinal estava curtindo a primeira semana a bordo do novíssimo Marmoturbo 3.0 Flex. Já estava na Avenida Tiradentes quando, num relance, observei o odômetro: em poucos dias, já tinha andado 665 quilômetros (sim, em menos de uma semana, eu passo a vida dentro do carro). “Puxa, em poucos metros, essa bomba vai marcar meia meia meia, o número da besta. Que besta!”. Besta mesmo foi o que decidi fazer para “tapear” a superstição: seguir em frente e ignorar o painel do carro até o mostrador indicar 667…

Quilômetro 666Parecia que tudo ia bem, até chegar naquele semáforo chato da Ribeiro de Lima, logo depois da Rota. Ali o trânsito parou de vez. Tive que esperar o verde por três vezes – na segunda não saí do lugar mesmo com sinal aberto, sob pena de fechar o cruzamento. Ao mesmo tempo, nuvens carregadas se acumulavam em nossas cabeças. Em questão de segundos, o tempo fechou e pingos mais fortes começaram a cair. Quando finalmente estava ao lado da Estação da Luz, a chuvarada já tinha força total.

Então o odômetro marcou 666 (acabei vendo isso) e o tradicional anda-pára, popular em São Pauoo, se tornou insustentável. Até que, na boca da passagem subterrânea Tom Jobim, sob a avenida Senador Queirós, o trânsito parou de vez. E nada do temporal, cada vez mais forte, passar. No meio da fila e sem ter por onde sair, tudo que podia fazer era aumentar o volume do rádio, desligar o motor e esperar.

Poucos minutos depois, um motoboy bateu no vidro do carro, num sinal de desespero.

– Sai de ré!!! Dá ré aí!!! O túnel tá alagando!!!

Calmamente, respondi ao motociclista que eu poderia sim andar para trás, desde que pudesse passar por cima do Corsa prata que estava bem atrás. Não adiantou. O desespero contagiou alguns motoristas da volta. A van, que estava bem na minha frente (mas ainda longe do tal alagamento) não quis saber de qualquer lei da física. Estava a alguns milímetros de mostrar a capacidade da matéria ocupar o mesmo lugar no espaço. Duas buzinadas foram suficientes para o rapaz se mancar.

Quilômetro 666Mais motoqueiros apareceram, dispostos a resolver o problema. Batiam nos vidros e nas laterais dos carros. Gritavam “tá alagando” e gesticulavam. Não dava para ver onde estava a água, mas certamente ainda tinham uns três ou quatro carros na minha frente. E quem vinha logo atrás, pela Avenida Tiradentes, e não sabia de nada? Como é que aqueles heróicos cidadãos, debaixo de muita água, resolveriam o dilema? Enquanto isso, a Tatiana Vasconcelos, da Bandnews FM, se limitava a dizer que “o trânsito na região do Anhangabaú estava ruim apenas no sentido bairro”. Quase liguei pra ela, para gargalharmos juntos.

Nessa altura, motoristas e passageiros já circulavam, com o guarda-chuva aberto, tentando resolver o problema. Inclusive o cururu da van, um careca. Inerte no banco do motorista, só fiz cara de “o que eu posso fazer enquanto todos estiverem atrás de mim”. Pode ter sido falha minha, mas eu realmente duvidava que a água pudesse chegar ali onde eu estava, ao contrário do que todo mundo parecia acreditar. Não seria justo com o meu carro novo.

Quilômetro 666Quase uma hora depois, a movimentação aumentou. Quem estava fora voltou aos seus postos. Começaram a sair dali, fazendo a volta pela Senador Queirós. Estávamos salvos, afinal. Gente fazendo manobras inimagináveis em dias comuns, dando ré ou saindo na contramão para fugir da água. Até quem estava na minha frente saiu antes: só arredei o pé dali quando praticamente todos já tinham saído. Uma mulher, bem à frente, a bordo de um Corolla, parecia mais precavida”, acho. Chegou a sair do carro e deixá-lo ali, para não “afundar” com o carro.

Calmamente, embiquei o Marmoturbo para a saída (originalmente, a entrada) e saí em primeira marcha. A visão da Avenida Tiradentes era o verdadeiro caos. Carros e caminhões parados na outra margem da inundação, aguaceiro que precisei atravessar para, finalmente, acessar a Senador Queirós. Levei pelo menos mais duas horas para chegar ao trabalho… Dos males, o menor: ao menos o odômetro já indicava outro número.

André Marmota acredita em um futuro com blogs atualizados, livros impressos, videolocadoras, amores sinceros, entre outros anacronismos. Quer saber mais?

Leia outros posts em E eu, uma pedra. Permalink

Comentários em blogs: ainda existem? (3)

  1. Estava com saudades de comentar aqui… Só quem vive em Sampa entende uma situação como essa do seu post. Eu também já passei por algo parecido, mas, diferentemente dessa calma que lhe é peculiar, eu entrei num pânico básico, porque a água estava, sim, quase entrando no meu carro. Mas no fim tudo deu certo, apesar das minhas quase 3 horas parada esperando sozinha tudo se acalmar. Nesse dia eu me lembro que pensei: “não sei o que é pior: se a solidão ou essa aguaceira toda…”. Ainda não encontrei resposta.

  2. Eu não sei se você vê comentários de posts mais antigos, mas…

    o sr. anda me maldizendo por aí, é???? rs…
    Não foi “a Tatiana Vasconcellos, da BandNews” que disse. Foi a CET que disse. A coitada da Tatiana só reproduziu! hahahaha!

    Que odisséia, hã?

    Um beeeeeeijo.

Vai comentar ou ficar apenas olhando?

Campos com * são obrigatórios. Relaxe: não vou montar um mailing com seus dados para vender na Praça da República.


*