Eu devia ter uns sete, oito anos, quando ouvi falar em Saramandaia. Foi numa tarde serelepe, onde mesmo após almoçar, não parava de abrir as portas dos armários e da geladeira em busca de acepipes. Minha mãe, apavorada, foi taxativa:
– Meu filho, se continuar assim, vai explodir como a Dona Redonda.
Quem?
Seguiu-se uma explicação sobre o universo fantástico criado por Dias Gomes. Wilza Carla, que interpretava a personagem, simplesmente explodia de tanto comer. Havia ainda um coronel que tirava formigas do nariz, uma moça fogosa no sentido literal da palavra, um estranho professor insone que virava lobisomem e um visionário que sonhava em criar asas e voar – ao som de Ednardo cantando Pavão Mysteriozo.
Só de ouvir falar, fiquei fascinado. Deve ser assim que uma criança de sete, oito anos, se sente ao descobrir a existência de, mmmhhh, mutantes em uma novela (vamos esclarecer: longe de mim comparar literatura de cordel com quadrinhos de segunda). Perguntei ingenuamente a que horas poderia assistir a saga, sem imaginar que a trama foi exibida em 1976…
Só fui entender quem era Dona Redonda anos mais tarde, em algum Video Show. Quem não conhecia este universo, no entanto, foi convidado a embarcar num trem com essa turma numa experiência inédita na história da TV: uma mini-novela patrocinada. A Vicunha, conhecida indústria têxtil, numa ação da Fisher América, encomendou o trabalho à Rede Globo.
Assim nasceu o Expresso Brasil, que tinha Dias Gomes como “projetista” (autor) e Paulo José de “maquinista” (diretor). A idéia era genial: o trem cruzava o país, com escalas em Sucupira, Asa Branca e Bole-Bole (aliás, a cidade mudou ou não de nome?). Nos vagões, personagens inesquecíveis de O Bem Amado, Roque Santeiro e Saramandaia, como Viúva Porcina, Zico Rosado e Dirceu Borboleta se encontravam casualmente.
Com o Trenzinho Caipira de Villa-Lobos ao fundo, Lima Duarte aparecia no trem como Zeca Diabo e Sinhozinho Malta. Paulo Gracindo era, além de Odorico Paraguaçu, o bicheiro Tucão de Bandeira 2. Imagine um encontro entre as Irmãs Cajazeiras e Dona Pombinha. Ou o discreto e impagável diálogo entre os “lobisomens” Astromar, de Roque Santeiro, e Aristóbulo, de Saramandaia:
– E aí, tem virado muito?
– Só em noites de lua cheia, de quinta pra sexta preferencialmente. E você?
– Tooodas as noooites… (suspiro de Aristóbulo).
Aproveitando a licença poética do trem, Dias Gomes tratou de embarcar alguns convidados especiais. Luiz Gustavo auareceu como Léo (Te Contei?), Mário Fofoca (Elas por Elas) e Victor Valentim (Ti Ti Ti), todas criações de Cassiano Gabus Mendes. Teve ainda três personagens de Gabriela: o Nacib de Armando Bógus, o Tonico Bastos de Fúlvio Stefanini e a Maria Machadão de Eloísa Mafalda.
Foram 40 episódios de cinco minutos, exibidos entre o Jornal Nacional e a novela O Outro, no segundo semestre de 1987. O último capítulo homenageia o autor de maneira inusitada: Dias Gomes é descoberto como um dos passageiros do Expresso Brasil, provocando uma aglomeração de personagens, indignados com seus destinos, loucos para tirar satisfação. Até que o simpático bilheteiro anuncia: “próxima parada: fim da linha!”.
O publicitário Eduardo Fischer, nesta entrevista ao Adonis Alonso, relembra o quanto foi divertido conceber a mini-novela, trabalho que pode ser considerado o primeiro case de “brand entertainment” da televisão brasileira. E é incrível pensar que, em mais de vinte anos, não houve nenhuma ação semelhante…
Já pensaram numa segunda locomotiva, com personagens de Aguinaldo Silva, por exemplo? Ou, de repente, Glória Perez poderia fechar a Estudantina para uma gafieira exclusiva – já posso ver a Dona Jura se requebrando na frente do punk Reginaldo…
Eu lembro da Dona Redonda. Tenho quase certeza que passou no vale “a pena ver de novo”. Ainda mais para uma família de gordinhos, como a minha, era um cliche comum na época. Sem contar os lobisomens…
Putz… Saramandaia deve ter sido uma novela muito divertida de se ver! 😀