O jogo da semântica

Um dos meus ofícios é justamente zelar pelo nosso idioma enquanto transmitimos, da maneira mais clara e objetiva possível, aquilo que a sociedade (ou alguém com cacife) define como notícia. Neste blog, no entanto, não dou a menor pelota para esse cuidado. Não se trata de uma falha grotesca como escrever “axim”, ou mesmo aquela pequerrucha de sempre, como a maldita vírgula entre o sujeito e o predicado… Uma passada de olhos nos meus arquivos, no entanto, me causam algum espanto: sempre encontro algum errinho ortográfico ou gramatical perdido.

Eu já tive uma namorada que ficou extremamente magoada comigo pelo simples fato de corrigir, na frente dela, um cartão romântico entregue naquele instante. Na época, pensava que “não podia deixar passar alguém escrever sossego com C”. Desde que a perdi, nunca mais corrigi ninguém fora do círculo profissional.

Ao mesmo tempo, também não me importo com quem me corrija. Vez ou outra, eu ainda posso contar com uma entidade anônima, sem fins lucrativos, que indica minhas pisadas na jaca. Mensagens anônimas chegam à minha caixa postal assinadas apenas como RESB, que presumo ser revisor(a,s) especial(is) secreto(a,s) do blog. RESB é uma boa sigla, melhor que RESMMM, que apesar de focar ainda mais o objetivo, fica parecendo um ruído amordaçado. E eu adoro a RESB.

Mas enfim. Um dos meus pecados favoritos é o maldito acento grave. A regrinha boba da crase é bem simples, mas as exceções me deixam pirado. Talvez eu fosse um dos muitos ignorantes do país que votariam no “sim” sem pensar muito caso o Ministério da Educação lançasse um referendo ao estilo “você é a favor do fim da crase?”. Mas talvez eu pensasse melhor e me filiasse ao “partido” do escritor Ferreira Gullar, autor da célebre frase: “a crase não foi feita para humilhar ninguém”.

O mesmo Ferreira Gullar escreveu sobre na Folha de S. Paulo há um ano. Duas vezes. Na primeira, criou um mal entendido e recebeu muitas críticas, ao fazer sua defesa (correta) sobre o bom uso da gramática em detrimento ao vale-tudo-desde-que-se-entenda. Na segunda, fez questão de responder aos críticos, ressaltando seu ponto de vista – que é bem parecido com o meu. Temos problemas estruturais de educação, e é preciso manter o bom senso, sem neuroses. Mas para resolvê-los, a solução é usar os livros, e não rasgá-los.

Gostaria de esclarecer ao leitor que, quando aqui publiquei a crônica “Alguém fala errado?”, não pretendi me arvorar em defensor radical do purismo lingüístico, que não sou, primeiro porque, em matéria literária, estou mais para os poemas sujos do que para os limpos e, depois, por não ter mesmo competência para isso. Respeito os filólogos, os lingüistas e os gramáticos; embora nem sempre concorde com eles, estou convencido do papel importante que desempenham no conhecimento e preservação de valores fundamentais de nosso universo cultural, de que a língua é uma das vigas mestras.

Também falo errado, também escrevo errado, mas fiquem certos de que faço um grande esforço para, sem arrogância, falar e escrever o menos errado possível. Incomoda-me, por isso mesmo, o desmazelo no uso da nossa língua como também a complacência com esses erros. Decididamente, não aceito que se dê como certo escrever nos jornais e falar na televisão coisas como “as milhões de pessoas” ou “um dos que fez”. Causa-me certo mal-estar o uso pedante de expressões como “isso não significa dizer”, quando todos falamos em nossas conversas e a cada momento “isso não quer dizer”. Sei que o mundo não vai acabar se muita gente teimar em cometer tais atentados à boa maneira de usar o idioma, mas tenho também o direito de manifestar meu desagrado. Se criticamos os erros dos governantes, dos deputados, dos juízes de futebol, que desrespeitam a ética, por que não podemos criticar os erros -ainda que muitíssimo menos graves- de escritores, locutores, jornalistas, advogados, economistas, que desrespeitam a gramática?

Tampouco me tenho como um feroz inimigo do uso de palavras e expressões estrangeiras, quando impostas por necessidades da própria vida, em razão do surgimento de novas tecnologias ou novos hábitos. E também sei que certas expressões, depois de nos irritarem por algum tempo, desaparecem tão de repente quanto apareceram. Lembram-se da expressão “a nível de”? Não sei por que cargas d’água se começou a usar essa expressão espanhola para tudo e da maneira mais arbitrária, como, por exemplo, “a nível de carros de corrida” ou “a nível de poluição” ou, num programa de culinária na televisão, “a nível de carne-seca com abóbora, o melhor tempero é…”

Devo admitir que os lingüistas têm razão quando adotam uma visão aberta com respeito às normas lingüísticas e gramaticais, compreendendo que o idioma é um organismo vivo, em permanente mutação. Pode ser que ainda reste em mim um pouco da convicção do menino que, por ter tirado 9,5 e não 10, na redação sobre o Dia do Trabalho, devido a dois erros de português na dissertação, decidiu estudar gramática dia e noite, já que sonhava ser escritor e escritor não pode escrever errado… Nisso consumi uns dois anos, sem ler outra coisa. Muito aprendi na “Gramática Expositiva”, de Eduardo Carlos Pereira, na “Gramática da Língua Portuguesa”, de Carlos Góis, e em “Através do Dicionário e da Gramática”, de Mário Barreto… Já não me lembro de nada do que li porque, como já disse aqui, uma de minhas características é esquecer quase tudo o que leio, pois, ao que parece, certas coisas não me ficam na mente, mas talvez disseminadas na pele ou nos cabelos.

Estou convencido de que a gente inventa a fala a cada momento, a cada pergunta que nos fazem ou idéia que queremos comunicar. Algumas expressões estão prontas, são lugares-comuns, mas é fato também que optamos em usá-las ou não no momento mesmo de falar. Em sua maioria, as frases que emitimos as inventamos na hora. Se alguém me pergunta se quero ir ao cinema e a resposta é negativa, tanto poderei dizer “Não, não vou”, ou “Não quero” ou “Hoje não dá” ou… Agora mesmo, ao escrever esta crônica, não sabia de antemão que forma tomaria esta frase que escrevo -ou invento- neste instante mesmo. De fato, escrever, falar é improviso.

A referida crônica aqui publicada foi mais um desabafo, sem a pretensão de ensinar o bom português a ninguém, muito menos aos estudiosos da língua. A mim também desagrada o excesso de imposição, de regras, e mais ainda a pretensão dos que se consideram mestres da língua. Não por acaso, sou o autor daquele aforismo que diz “a crase não foi feita para humilhar ninguém” e daquele outro -que vale aqui como autocrítica-, “quem tem frase de vidro não joga crase na frase do vizinho”.

Tampouco desejo para mim o papel dos que acham que nada há de novo sob o sol e que tudo o que foge a seu conhecimento não é mais que ilusória novidade. Não, não sou como o dr. Fontes, escritor da Província, advogado e poeta parnasiano, que, após ouvir a conferência de um intelectual do Rio sobre a semântica como instrumento de crítica literária -e sem entender patavina do assunto-, pediu a palavra e falou: “Que me desculpe o ilustre professor, mas o que acaba de nos dizer não é nenhuma novidade. Como já dizia Olavo Bilac, “pois só quem ama pode ter ouvido…'”. E começou ondular os braços no ar. “Olha o jogo da semântica!… “capaz de ouvir e de entender estrelas”…” Olha o jogo da semântica!

Comentários em blogs: ainda existem? (9)

  1. nossa gramática é um absurdo,palavras com duplos significados,com um s,com dois,s com som de z,sem falar na gambiarra do c com cedilha,ridículo,estes puristas da lingua portuguesa deviam arrumar algo realmente útil pra se fazer…por que não acrescentam @#!&*@… no final do alfabeto,seria verdadeiro sentido de nossa gramática…por eles estaríamos escrevendo e falando como no século XVIII.

  2. a propósito,aqui na cidade onde moro atualmente (Patos de Minas-MG),as pessoas chamam uns aos outros de marmotas.Patos querendo ser marmotas…rsrsrsrs…Talvez,o nome Marmotas de MInas-MG seria mais adequado. Tem até um policial chamado Sargento Marmota…

  3. Aê, um texto na minha área!!!

    Esse é um assunto que adoro, até porque trabalhei com revisão de textos para uma editora por quase um ano…

    Mas não vou aqui defender, nem atacar, o uso correto da Língua Portuguesa por meio da Gramática por um simples motivo: depende do ponto de vista. E do momento.

    Mas isso é papo pra se bater sentado à mesinha de um buteco… hehehe

    Um abraço!

  4. Há algumas semanas apareceu um “RESB” no meu blog também, mas este se identificou e acabamos por trocar alguns e-mails, onde ele, além de me corrigir, explicou com detalhes onde, como e porque eu estava errando. Achei interessantíssima a interação, gosto de ser corrigido quando erro.

    E com minha namorada, não tem essa de ficar chateado quando um corrige o outro (e fazemos isso sempre que necessário). Aliás, a partir destas correções, surgiu uma certa história de um certo casal, denominado “seje” e “dirruba”.

    (Em tempo: o “dirruba” sou eu, hehe!).

    []’s!

  5. Acho que preciso arranjar uma RESB.
    Gostei da argumentação e da defesa do idioma correto. É sempre bom ver que há gente preocupada com a língua e o seu uso correto, principalmente quando temos analfabetos funcionais em vários campos.
    Às vezes fico surpreso com o que ouço e leio, não pela correção, mas pelo sentido que colocam em uma palavra, uma frase, que nada tem a ver com ela.

  6. Na boa, só corrijo quem eu gosto. Porque fico imaginando as pessoas que gosto numa situação de entrevista de emprego, por exemplo, falando ou escrevendo errado. Mas quem eu não gosto, eu não corrijo – deixo continuar errando.
    Admiro o Ferreira Gullar por ter lido tantas gramáticas, mas ainda acho que a melhor forma – e a que dá mais prazer – de escrever corretamente é ler.
    E já tive um namorado que escreveu numa carta linda o quanto ficava ancioso pra me ver. Como você vê, trocar s por c não é tão raro assim e eu não deixei passar também, porque gostava dele, claro. 🙂

  7. Eu acredito que o jornalista é um bicho pedante por definição.
    Apontar erros no texto e nas falas dos outros é tão desagradável como um amigo dentista que bate no seu ombro e diz que sua dentadura foi feita errada.

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