– Cara, você sabe que só leio o seu blog. Continuo gostando, mas estou preocupado contigo.
– Como assim?
– Essa… Essa sua desova de cadáveres interminável. Você devia estar feliz, é um homem livre, pronto para cuidar da sua vida. Tome as rédeas de uma vez, homem!
– Obrigado, de verdade. Ando tendo dias mais animados, sim. Mas outros são duros. Vem aquele vazio, preenchido por uma mágoa horrível que parece igual há semanas. Acordo no meio da noite com vontade de ligar e dizer o quanto sinto a falta dela. Por isso, escrevo. Dizem que o tempo cicatriza coisas, mas quando o buraco reaparece, igual há semanas, chego a duvidar dos poderes do tempo.
– Deixa de draminha. Você fica aí dando bandeira, escrevendo sobre seu pé na bunda há semanas. Só falta postar fotos no Facebook dizendo que “a sua vida profissional vai bem”, louco para que sintam peninha. Todo mundo se separa, oras. Acostume-se.
– Ela disse que nosso tempo já passou. E eu não me conformo, mesmo que essa sensação seja só minha.
– Pois eu acho que é uma boa explicação. Vocês se conhecem há anos, viveram muita coisa.
– Bom, ela atravessou o país de ônibus para me ver. A primeira coisa que eu disse, enquanto ela falava milhões de coisas para disfarçar, foi: “você viajou todo esse tempo e não vai me dar um abraço?”. Bateu em uma pedra dura a ponto dela furar. Graças a ela, hoje adoro poesia e Liniers. Ganhei brinquedos de miriti, livros lindos, cartões que passo horas olhando, centenas de fotos, uma serenata em Ouro Preto, uma tartaruga chamada Ted, noites deliciosas em Santiago e Salvador… Mas e daí? Isso é muito, muito pouco perto do significado de estar ao lado dela. Agora é só mais uma das minhas historinhas tristes de insucesso. Quer saber? Nós não vivemos nada. Nosso tempo nem começou.
– Não viveram nada? Cheirou acetona? Eu vou embora. Não vou discutir.
– Olha, espere. Vivemos algumas coisas, sim. A maioria cabe em um único dia. Como ela dizia quando nos vimos pela primeira vez. Estava encantada pelo fato de ajudar a quem precisasse, e dizia: “agora é a tua vez de ser feliz e não vou medir esforços”. E eu questionava: de que adianta ser feliz por uma semana e depois ficar só? “Pensa que muitos não são felizes nem por um só dia”.
– Mmmhhh… Cabem em um dia, é?
– Por exemplo, teve um dois de maio. Desde suas primeiras horas na neblina de uma infinita highway. Ela morre de medo de estradas sinuosas, mas logo dormiu no banco do passageiro, como sempre faz quando confia no motorista. O medo dela se converteu na mais sublime felicidade no quarto do nosso hotel, o mesmo da nossa primeira vez. Vesti um pijama azul, ajoelhei e segurei uma caixinha. Era como se estivesse entregando a ela um tamba-tajá. Igual o da letra do Waldemar Henrique… “Quem tem um tamba-tajá, seu amor não perderá…”. Naquela caixinha estavam todos os nossos desejos. De repente ela virou uma menina com uma flor, as rosas pareceram se multiplicar nas nossas cabeças. Então veio um abraço. Cara, tudo cabe em um abraço como aquele. Forte, apertado, mágico, confuso, quente, desajeitado, decidido, esperado, carinhoso, terno, eterno. Uma das melhores razões para se viver é o abraço dela. Nele não é preciso pedir para ser uma eterna paquerinha. Nem precisávamos ser noivos, talvez nossa relação pudesse sumir depois daquilo. Mas nosso sentimento estava ali. Sentimento que, entre tantas demonstrações de amor e cumplicidade, fez com que ela pedisse “um beijo na nuca”. Passamos a noite trocando beijos e lembranças. Ela dizia que as memórias mais doces reapareciam comigo. Ela enxergava plenamente quais eram verdadeiramente fundamentais e, por isso, não deixaria de acreditar. Também questionava sobre como seria quando a gente casasse, morasse na mesma casa. Como ela faria pra se desacostumar a sentir saudade, pois sentia isso desde sempre.
– Isso tudo na noite que você pediu para casar com ela, é isso?
– É. Mas quando digo que cabe tudo em um dia, isso inclui o lado ruim. Sempre me senti em uma montanha russa na neblina ao lado dela. E logo cedo, enquanto ainda dizia “minha noiva linda” quando ela tinha acabado de tomar banho e ainda estava enrolada na toalha, ligamos para os meus pais e contamos a novidade. Ela ficou triste com uma pergunta que ouviu. Parecia boba, mas até que é pertinente, especialmente hoje: “é isso mesmo que você quer, menina?”. Virge, ela ficou uma fera. Insistia que sempre teve certeza em relação a nós. “Lógico que eu quero casar. Também quero todos os desdobramentos disso. Lar, família, filhos, amor, cumplicidade, parceria. Você e o seu pai talvez não imaginem o valor imenso que dou a ti e ao que temos. Você é o homem que eu sempre procurei. Família, divertido, inteligente, que gosta de ler, escrever, conversar, que é mais ponderado que eu… Eu te agradeço por isso. Não há no mundo alguém mais paciente comigo do que você. Isso é muito sério pra mim. Você não é nem nunca foi meu brinquedinho da semana”.
– Nossa. Ela disse mesmo isso?
– Disse. E eu também queria muito. Ainda quero. A gente comemorou aquela tarde no Mercadão, ao lado de dois amigos queridos. Mostrou a aliancinha pra eles e todos os outros que passavam na rua. Achava lindo e super romântico ela ser a metade de um coração – a outra ficava comigo. “O noivo de todas as minhas vidas. O meu querido, o meu amor, o meu benzinho… Acho que nasci par ser noiva dele”, dizia, feliz. No fim da noite, em uma cantina, ela pediu Al Di La ao simpático violonista. Foi sensacional: ela perguntou se o sujeito conhecia, e a resposta foi: “eu cantava isso antes mesmo de você nascer”…
– Tá vendo só? Você viveu tudo isso, foi legal. Agora passou. Ela não quer, chega. Não discuta com mulher. Ela tem razão.
– Aquele dia representa a maturidade de tudo o que sentia por ela. Ainda tenho isso forte comigo. Ouço ela dizendo “eu te amo, sou apaixonada por você, hoje eu gosto de você de uma forma melhor que antes, somos amigos sim e por isso quero casar contigo e ter uma estantona de livros, filhos e um lar feliz. Qualquer coisa com você me soa feliz. Ainda vamos ter dias e dias de discussões, poemas, viagens, passeios no Ibirapuera, viagens no carro escutando música, comendo como uma gorda, sendo feliz enfim. Dias e dias de Roberto Carlos, almoço apressado, contas na ponta do lápis e horas juntas no chuveiro. Natal com A felicidade não se compra, Quintana e blogs familiares. E eu não sei se a gente vai ter uma livraria, a nossa rádio, morar no nordeste ou na Aclimação. Eu só sei que nossa vida não será perfeita porque não somos atores de comercial de margarina. Eu só sei que somos duas mulas que querem a mesma coisa, a felicidade do outro. Eu só sei que nossa vida, nosso lar, nossa família vai ser de verdade, pra valer. Com todos os percalços e vitórias que fazem com que no final das contas essas coisas de relacionamento valham a pena. E, puxa vida, como eu sou apaixonada por você. Como eu me preocupo com você. Como eu sinto ciúme de você. Como eu amo você. Muito. Um dia, vamos viajar no dia dos namorados pela aquela estrada com cheiro de infância cantando Balão Mágico ao lado das crianças, nossos quadrigêmeos que vão virar cartões com as fotinhas deles sujos de torta… Nós podemos fazer todo esse monte de coisas maravilhosas. Juntos. Porque não merecemos nada além do maravilhoso”… E eu não tive a chance de viver nada disso, perdi a presença dela na minha vida e nem entendi os motivos, sequer consegui me defender.
– Você é um completo idiota. Essa mulher não existe mais. Virou uma louca, insegura, carente, mimada e cheia de complexos. E você também não é mais o mesmo. Sua alma, sua palma. E esse futuro imprevisível aí? É delírio seu. Tem mais: se você sabe que essas lembranças vão te machucar, por que você ainda insiste em pensar nisso, escrever sobre isso?
– Dói, sim. Mas sei também que, lá na frente, quando isso passar, vou sentir gratidão por ter sido protagonista desses momentos, por lembrar como é sonhar. Mesmo que eu nunca mais a encontre e jamais saiba porque nos separamos, não quero esquecer que, em algum momento, sabíamos que dava para ser feliz ao lado de alguém. Ela também dizia o seguinte: “quando o avião enfrentar turbulências, lembra que em alguma praia deserta e linda tem uma mulher saindo da água do mar, indo na tua direção pra te dizer que gosta muito dos teus textos e de ti. E isso, esse nosso momento mágico, não vai mudar nunca e vai sempre renascer quando tu precisares, como da primeira vez”. E assim, meu amigo, nosso tempo se transforma e, quem sabe, as lições da vida não passam batido. Quem sabe isso que eu sinto agora não sirva pra alguma coisa, né?
– É… Quem sabe. Mas agora aproveite e preserve o seu tempo. De todas as coisas que se pode dar a alguém, o tempo é a mais perecível. Vê se não usa tempo demais com o que ela diz que passou, pare com essa espetacularização e vá cuidar daquilo que ainda dá pra viver.
Olha eu ali! Bem ali! No Mercadão e na cantina.
Pensei, pensei e lembrei de Rainer Maria Rilke – Cartas a um jovem poeta – em meu trecho favorito que diz mais ou menos o seguinte: “O importante é viver tudo. Viva as perguntas agora. Quem sabe aos poucos venha a viver as respostas.”
…
(O que eu posso dizer?)
Ainda torço muito por vocês!!
Hoje não sei se isso é um desejo ou uma ameaça.
Fico tentando imaginar quantos interlocutores diferentes inspiraram o diálogo. Aliás, quantos são reais e quantos são imaginários. Um real eu localizei no 1º parágrafo. Os demais são uma incógnita para mim.