Olha, antes de você aparecer eu já era meio “ogro”, como você costuma dizer. Eu prefiro dizer que tenho uma “visão cartesiana”, moldada (talvez erroneamente) por algum bloqueio do passado. Devia saber que, antes de te encontrar, devia aceitar que as minhas frustrações não faziam muito sentido diante das riquezas do nosso encontro. Um momento que, até hoje, não encontro melhor palavra para defini-lo: sonho. “Te trago demais no peito… Porque tu fizeste mudanças no meu coração…”. O problema é que nunca entendi você, suas intenções. Chamava seus sentimentos de amor, mas eu só enxergava obsessão, limerância, histrionismo. Na verdade, eu estava preso a um roteiro pautado por ações práticas, com lastro na realidade.
“Você era eu aos 14, mas já tinha 28, e é por isso que eu amo você”, dizia, achando lindo o olhar de uma criança repleta de certezas e trazendo sentimentos carregados de esperança. Ambos, sem saber, iludidos, vivendo em universos paralelos – eu razão, você emoção. Nas poucas vezes que nos víamos, relutava em viajar para sua casa, enquanto você se espantava comigo. Lembra do nosso primeiro beijo, aquele que eu não queria dar por medo de te magoar? Você dizia não saber, nem aceitar, esse “meu jeito consciente”. Levou tempo para me convencer de que havia encontrado “a pessoa certa”.
Então, quando tudo parecia tranquilo, tropecei nas certezas que guardávamos, estateladas num chão aberto. Foi como se tivesse levado uma rasteira. Caí junto com a imagem de perfeição, de definição, do “homem de todas as suas vidas” que existia em nosso imaginário. Antes, era como se jogássemos frescobol – eu aqui, você aí, mas sem deixar a peteca cair. Hoje ainda seguramos raquetes, mas você perdeu a vontade de jogar. Vez ou outra, quando eu saco, você devolve com força, de voleio. E fico assim, tentando descobrir como devolver a bola – se é que você ainda a quer.
Não devia me sentir perturbado com estas coisas, especialmente diante do desafio que é encaminhar nossa vida profissional. Enfim, finalmente tive a chance de unir a fantasia à ciência ao ter a chance de participar de um seminário. Chamou-se “Emoção e Imaginação” – justamente estes dois assuntos que me derrubam quando penso em ti. Ali, professores alemães dialogaram com os brasileiros em três dias que mexeram muito comigo. Nas palavras do professor da Faculdade Cásper Líbero, José Eugênio de Menezes, “a palavra seminário tem a mesma origem de semente, o que denota o semear de idéias, a cultura do ouvir”. E não faltam sementes novas, prontas para germinar ao lado de ideias passadas – algumas daninhas, admito.
Qualquer relação humana depende de emoção e imaginação. Esta combinação influencia nossas motivações e intencionalidades. De tão impregnados em nossa mente, espalhados como num universo abstrato e complexo, muitas vezes nem pensamos nisso. Ou citamos, com desdém: “como é possível mensurar, categorizar ou direcionar emoções?”. Ou não queremos pensar, sob a bandeira de uma pretensa tranquilidade. Bobagem. Mesmo alguém que acredita não lidar bem com emoções não consegue deixar de viajar pela imaginação. Para mim, este evento tinha um significado maior: emoção e imaginação é você. Foi num passeio ao mundo dos sonhos que conheci você, seu habitat… Nós formalizamos nossos desejos, nossos sentimentos, em um universo formado por emoção e imaginação.
Agora veja só, tudo o que sabíamos um do outro era, na verdade, referências culturais do imaginário. Eu era George Bailey, aquele cidadão desapegado que adia seus projetos em detrimento a felicidade das pessoas que ama. Ou Robert Kincaid, aquele fotógrafo despachado que vive um curto, porém intenso, caso de amor com Francesca Johnson. E você era Vênus Anadiômena, eterna amante saindo das águas em busca do amor verdadeiro. Ou ainda Madame Bovary, a mulher envolta em literaturas estranhas e romances sentimentais, que vive um dilema ao lado de um sujeito entediante: lidar com o desejo de realizar formas imaginadas de amar, classificando como inútil o que não lhe satisfazia, entusiasmando-se mais por emoções do que por paisagens. Enquanto tentava me reconhecer neste universo, ouvia de você um “sabe o que eu acho? Que nós somos as pontes de Madison que poderiam dar certo… Porque vivemos isso 20 anos antes de Robert e Francesca e ainda há muito a se viver”.
E é tão estranho pensar que nossa experiência de alteridade – isto é, nós existimos apenas diante do contato com outro – começou assim. Mais estranho é nos darmos conta que, no fim das contas, tanto faz a origem das nossas memórias – ou esquecimentos. Walter Benjamin, ao citar a obra “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, lembra que ele “não descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu” – frase lembrada pelo Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, que abraçou a idéia deste encontro.
Amor e paixão
Um dos curadores do evento, o professor alemão Christoph Wulf, da Universidade Livre de Berlim, definiu imaginação como “energia de caráter representativo, que age em objetos ausentes materialmente. Esta energia contribui para tornar as emoções presentes, transformando o mundo interno e externo e vice-versa”. Se por um lado imagens criadas são imprecisas, é esta falta de foco que podem dar-lhes força, movimento. Não à toa, Norval Baitello Junior, professor da PUC de São Paulo, diretor do Centro Interdisciplinar de Cultura e Mídia (CISC) e também organizador do seminário, lembra que emoção tem em sua base a raiz latina mov (movimento), que com o prefixo ex, sugere um movimento para fora, apartar, afastar. Curiosamente, é a mesma origem semântica de motim (rebelião, revolta)… Para os gregos, a imaginação era o movimento das imagens, cuja fórmula está embutida na palavra pathos: acontecimento novo, imperfeito e em excesso, provocado por imagens oriundas de todos os sentidos, e não apenas de seus processos externos; mobilidade capaz de desestabilizar, causar sofrimento. Nossa tradução de pathos nos dá outra conexão entre emoção, imaginação e movimento: paixão.
Puxa. Só de pensar em “paixão”, ouço sua voz lamentando o sumiço dela e do quanto isso importa em seu mundo… A palavra foi a base da fala de Angelika Neuwirth, professora de estudos árabes na Universidade Livre de Berlim – ela analisa o Corão como literatura, você iria adorar! – ao falar sobre paixão em seu contexto bíblico, “representação iconográfica do segredo do Deus que sofre”, que deriva a compaixão, desejo de aliviar esta dor. E tem como falar nisso sem esquecer de um termo de definição ainda mais complexa e imprecisa – o amor? Ingrid Kasten, também professora de literatura antiga em Berlim – vá anotando! – fez uma viagem a Idade Média, tempo em que o amor poderia ser traduzido pela palavra alemã minne: algo relacionado à devoção entre suseranos e vassalos, fiéis e seu Deus. A imaginação já era vista como a preservação mental das coisas visíveis, tornar presente um objeto em sua ausência. Mas para efeito de criatividade, explorava-se apenas novas dimensões de sentido através de exercícios de estilo. Por isso o amor adúltero no mito de Tristão e Isolda (Século XII) escandalizava: como é possível pensar no amor e no matrimônio, questões interligadas à época, assentando-os em mentiras e fraudes?
Amor e paixão estão facilmente associados ao tema do seminário – até porque, como lembrou Kasten, por mais que a história de Tristão e Isolda não escandalize mais, ainda causa irritação. No entanto, foram outras as palavras repetidas por praticamente todos os convidados, ressaltando a importância de alguns conceitos: transdisciplinaridade, vínculos, pertencimento, performatividade, mimese… Esta última, aliás, é uma das bases do pensamento de Christoph Wulf. A mimese é um dos elementos básicos do processo de sociabilização, intrinsecamente ligado à comunicação e ao reconhecimento como os homens se comportam no mundo. Não é uma simples imitação, mas algo mais complexo, elaborado a partir da produção de uma relação. “Eles (os homens) acolhem o mundo, mas não o vivem de forma passiva, eles respondem ao mundo com ações construtivas. O que eles receberam do mundo será trabalhado por eles nas suas próprias ações”. Somente em função de suas ações, o homem pode dar forma a um mundo que já lhe é dado. Ações criam emoções combinadas com imagens e experiências de vida anteriores, traz motivações, estados de ação, gestos, movimentos que refletem sobre o nosso corpo e estabelece nossa relação entre pessoas. Temos um sentimento inato de pertencer, e “essa predisposição humana para imitação criativa, buscando se aproximar de modelos, nos impulsiona e possibilita seu aprendizado”.
Emular imagens, estabelecer relações internas e externas, criar lacunas que serão preenchidas com emoções. É possível considerar também as imagens produzidas pelo movimento do corpo – gestos que despertam lembranças, valores, pensamentos… A “presentificação do invisível” a partir de emoções. Estes movimentos são evidenciados em manifestações artísticas (dança, cinema) e no esporte, inclusive na celebração da vitória de nossos heróis. Günter Gebauer, professor de filosofia da Universidade Livre de Berlim, dedicou sua palestra ao vínculo entusiasmado dos torcedores de futebol, cujas emoções coletivas “provocam a sensação de nosso ego serem elevados a um palco”. O que cativa neste exemplo é o fato de conhecermos muito sobre o esporte e seus movimentos, mas não sabemos exatamente por que nos envolvemos com esta fantasia coletiva. “Ao contrário da pintura, as imagens produzidas em jogos de futebol não são representações; tudo está na superfície”.
Eva-Maria Engelen, professora da Universität Konstanz, traz mais exemplos para ilustrar o conceito de emoção aliado à imaginação: “é possível representar uma melodia, uma equação matemática, uma situação ainda não realizada, e não necessariamente uma imagem. Mas também é possível sistematizar emoções, como ao imaginar jogar um dardo em um alvo, ainda que ele não exista”. Há aqui uma forma de dar força a um conhecimento. “Não é possível imaginar emoções totalmente novas”, diz. Helga Peskoller, professora da Leopold-Franzens-Universität Innsbruck, trouxe uma imagem ainda mais radical e desafiadora: alpinismo. Uma atividade humana desafiadora e paradoxal: é possível equilibrar a êxtase, a alegria e o medo diante do fato de nenhum corpo se acostumar a um abismo, com uma entrega física sem perder o controle sobre si mesmo?
Interdisciplinaridade
Chamo a atenção para outras palavras que podem contribuir na construção de um pensamento sobre o assunto. A começar por fascinação. Jerusa Pires Ferreira, doutora em sociologia da literatura, observa que nosso conhecimento e repertório são formados durante nossas “andanças peripatéticas”, onde podemos recolher encanto, disfarce, fantasia, presença… Aquilo que nos faz brilhar os olhos e ativa nossa memória. Como quando ela encontrou a história do linguista e arqueólogo russo Yuri Knorozov, que decifrou os códigos da escrita maia e “cujo método especial da comunicação” a fascinou. Ou ainda, quando revela sua baianidade, evoca o arrebatamento dos sermões do Padre Antônio Vieira. Em sua arte do vocal e performance, combinada ao texto escrito, “tudo conta, inclusive os timbres e tons, e isso não comporta rascunhos, sem possibilidade de repetições”.
Ei, lembrei agora daquela sua foto ao lado de Gabriela no Bar Vesúvio, despojada e deslumbrante, e da vontade que sempre tive em seguir seu fascínio pelas ruas do centro histórico de Salvador…
Mas enfim, retomando. Temos ainda empatia, mote da fala de Malena Contrera, que fez uma reflexão baseada em sua etimologia – imaginava que empatia e simpatia pudessem vir de pathos (paixão), mas faz sentido vê-la associada à palavra grega hepar, de onde temos hepato (fígado), tornando-a algo visceral, físico (informação verbal) . De qualquer forma, ambas estão ligadas a algum tipo de sofrimento. Trouxe ainda a definição do professor de bioética da UFRGS, José Roberto Goldim: enquanto simpatia é um sentimento que vincula as pessoas, a empatia vai além, “é olhar com o olhar do outro, é considerar a possibilidade de uma perspectiva diferente da sua. A falta de empatia é desconsideração, é não permitir diferentes percepções. A falta de empatia desconsidera a pessoa em si, os seus valores, o seu sistema de crenças ou os seus desejos”. Somos acometidos por uma vontade de estarmos vinculados, de um sentimento de pertencimento, mas diante da espetacularização da vida, há uma propensão a adesão por mera simpatia, amplificando o vazio da noção de indivíduo.
Por fim, felicidade – e aqui, nada me tira da cabeça o fato desta mesa ter sido realizada em um dia primeiro de abril… Acreditar na felicidade plena é discordar de Joerg Zirfas, professor da Friedrich-Alexander-Universität Erlangen-Nürnberg: “só pessoas infelizes e insatisfeitas fantasiam”. Satisfação e felicidade estão associadas à sensação de prazer ou alegria, desejos conscientes ou inconscientes que se realizam criando uma situação de satisfação. Um estado de felicidade gera um vazio, destituido de imagens ou fantasias. Dessa forma, será que o ser humano quer ser integralmente feliz – como se quiséssemos voltar para a tranquilidade do útero materno ou ainda experimentar um estado absolutamente ausente de tensões, a morte? Por que não optamos por outras formas de garantir uma vida sem desejos – como drogados, pessoas loucas, em euforia permanente, instaladas num “admirável mundo novo” de Huxley ou conectados em uma máquina de prazer constante? Sob o ponto de vista da psicologia, “o que o ser humano quer é o espaço de imaginação onde há felicidade, e isso caracteriza sua vida normal”.
Na Universidade Livre de Berlim, emoções são estudadas sob o prisma da psicologia, da biologia, das ciências da cultura, entre outras. A partir destes prismas, é possível enxergar duas tendências contraditórias, segundo Wulf, a respeito da constituição de nossas emoções. Uma parte de um caráter universal, onde todos os seres humanos sentem emoções da mesma forma. Outra, que reforça um caráter biocultural, diz respeito a nossa diversidade: nossas emoções básicas podem ser reconfiguradas culturalmente, ainda que as origens biológicas sejam semelhantes. É a transdisciplinaridade, também perseguida pelo matemático e professor Ubiratan D’Ambrosio, que utiliza a metáfora das “gaiolas epistemológicas” para explicá-la. “Vivemos sob muitas limitações. Costumo chamá-las de gaiolas, onde somos alimentados por teorias. Devemos cantar de acordo com a música executada pelos companheiros de gaiola. Mas qual o limite da gaiola? De que cor ela é pintada por fora?”.
Esta também é a marca dos estudos em comunicação, algo que pode ser visto como um recorte transversal em diferentes áreas do conhecimento dispostas em camadas – desde humanidades até a neurociência. Num cenário onde “a comunicação humana é um artifício cuja intenção é nos fazer esquecer a brutal falta de sentido de uma vida condenada à morte”, e por essa razão vista como um fenômeno artificial, raro e em muitas circunstâncias impossível, Ciro Marcondes Filho, professor-titular da ECA/USP, propõe pensar a comunicação adaptada a era tecnológica. “Comunicação é a capacidade do outro alterar algo que eu tenha em mim, meus valores, minha visão de mundo. Até que ponto estamos pensando na qualidade da comunicação que temos? Há alguma forma de intervir, de estimular o outro a pensar?”, questiona.
A propósito, já te falei que me interesso por processos de colaboração a partir da comunicação em ambientes virtuais de aprendizagem? Enquanto fazia meus apontamentos, tentava articular minhas sinapses transdisciplinares. Foi graças ao professor José Eugênio que conheci Vilém Flusser, citado algumas vezes no evento – ao falar sobre a dialética da imagem, a professora Lucrecia D’Aléssio Ferrara lembrou que o uso de imagens como metáforas são usadas constantemente para explicarmos fenômenos, e “pensar por imagens” pode nos permitir um exercício de felicidade. E sobre colaboração, alguns elementos-chave para que esta aconteça estão associados a uma situação favorável: o ambiente deve permitir simetria entre os interlocutores, capaz de garantir sua sociabilidade. Não há como desconsiderar o caráter emocional destas relações. Mais: em se tratando de conexões mediadas por computador, a existência do outro implica a formação de imagens baseadas nestas relações consolidadas por bits, interfaces, códigos textuais, cenário que representa um complicador para diversos autores.
Ah, mas que droga! Ao fechar meus olhos agora, pensando em imagens que movimentam emoções, sinto você deitada ao meu lado na cama pela manhã, aquela luz fraca da alvorada colorindo devagar seu corpo envolto nos lençóis… Concentra, André.
Vida líquida
Bom, em relação a essa ponte digital em que se encontram você, eu e meu objeto de pesquisa, em diversos momentos os painelistas reforçaram suas dúvidas diante do caráter fluido das emoções – que normalmente já dificulta qualquer tipo de pesquisa – e, para piorar, a aceleração deste fluxo diante de nossas relações mediadas por novas e ágeis tecnologias, além de reconfigurações sociais que privilegiam atributos como a “inteligência emocional”. Christoph Wulf, por exemplo, chamou a atenção para situações onde “as pessoas são mostradas em situação de decepção, humilhação, ciúme, etc. Apresentar publicamente estas emoções significa intensificá-las”.
Para exemplificar, Wulf tomou como base o “showneral” do cantor pop Michael Jackson, evento que não só redimiu o astro de qualquer acusação mas também representou emoções em escala global. “Enquanto imagem, Jackson ainda está presente. E para muitos, que mantinham relações com suas músicas ou encenavam seus passos, isso quer dizer que, antes de sua morte, ele já era visto como imagem. Logo, muita coisa não mudou”. Mais do que isso: independente do pano de fundo mercantilista e mesmo sendo um simulacro com moldura midiática, o ritual emocionou, envolveu da mesma forma.
Ciro Marcondes Filho lembra que com o surgimento de sistemas para o registro de imagens, sons e códigos a partir do Século XIX, “há um declínio do conceito de imortalidade: os homens consideram a morte um fenômeno relativo”. Meios eletrônicos e informáticos modificaram o ambiente denominado de “espaço da encenação”, lugar onde a “sociedade do glamour” estabelece um tipo de convivência não convencional, não presencial, um mundo paralelo “mais interessante e desejável em relação ao mundo real”. As conexões em rede colocam o homem diante de pessoas que não existem do ponto de vista formal, e sendo assim, prevalece a encenação – tanto eu quanto o outro, que fará sua leitura desta encenação. Se a nossa sociedade é baseada por fantasias, estaríamos nós perdendo nossa sensibilidade, tornando-nos menos capazes de perceber o mundo?
Encenação e imortalidade formaram o pano de fundo para a psicanalista e professora da PUC-SP Suely Rolnik, que aproveitou o velório de Michael Jackson para observá-lo como mais um rito de passagem, aos moldes do nascimento e do casamento, que deveriam reforçar o caráter passageiro da vida humana, para lembrarmos de nossa finitude. A partir de um conceito de política em níveis macro (onde a redistribuição de lugares e as estratificações sociais são visíveis) e micro (forças individuais que afetam, ressoam, provocam colapsos de sentido), ela faz um alerta diante da tensão entre as forças que habitam nosso eu e nossa alteridade. De um lado, a emoção vital, ativa, que investe em nossa reinvenção; mas de outro um vetor reativo que “na busca por um equilíbrio sempre provisório, insiste na cartografia atual e pode nos levar a negar estas mutações” – é o que Freud chama de “punção de vida e de morte”. Acreditar que seremos eternos, limitar-nos ao consumo de idéias controladas (“predomínio no mundo acadêmico”, alfinetou) ou prosseguir com o que ela chamou de “recalque colonial” é negar a força do pensamento, nutrindo um estado perverso de suspensão.
Não consigo deixar de associar estes fenômenos ao que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman chama de modernidade líquida, onde não apenas as emoções, mas também outros valores e crenças, derretem. A mesma liquefação é vista em nossos vínculos, dando ênfase à independência e liberdade de conexões que podem ser feitas e desfeitas a qualquer momento, tornando-nos impotentes diante de situações reais. Essa frouxidão também está presente em relações amorosas, onde sentimentos amedrontadores ligados à solidão combinam a alegria de estar livre, criando um paradigma. Tamanha imprevisibilidade oriunda deste investimento desregulado e temporário é comparada pelo autor com a morte – esqueça o bordão “até que a morte nos separe”. “Não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer. E não se pode aprender a arte ilusória – inexistente, embora ardentemente desejada – de evitar suas garras e ficar fora de seu caminho. Chegado o momento, o amor e a morte atacarão – mas não se tem a mínima idéia de quando isso acontecerá. Quando acontecer, vai pegar você desprevenido”.
Se retomarmos o conceito de empatia e simpatia proposto por Malena Contrera, podemos enxergar um caminho para fortalecer vínculos diante da autonomia individual relativa, desconectiva, disjuntiva: fugir de valores narcisistas e livrarmo-nos dos apelos simpáticos. Confesso que fiquei questionando junto, diante de uma pergunta da platéia: qual o nosso tipo de vínculo? “Depende do tamanho da projeção… Quanto tempo isso pode durar? Depende de quanto sua imaginação aguentar”. Aproveitou para citar Carl Jung, ao lembrar que nosso insconsciente também age neste processo: “você é responsável por sua própria inconsciência”. Mesma força é necessária para inverter o sentido do “vetor reativo da produção de pensamento”, nas palavras de Suely Rolnik. “Mobilizar a alteridade que nos habita, encarar a tensão e ir mais longe ainda, ativando nossa potência de pensamento e criação diante destas tensões, abre novos caminhos e vida volta a germinar”. Isto seria um resgate da definição original de poiesis, termo que está na raiz das poesias que você me ensinou a gostar, mas que significa “agir para transformar o mundo continuamente”.
Enquanto piso em nuvens, bombardeado por tons e luzes abstratas, fico sem ação visualizando você passeando leve, brilhante, sorrindo lindamente enquanto diz, com aquele tom de voz doce e olhar triste, que “só consegue ser assim”. Ao mesmo tempo, eu me sinto um daqueles vilões loucos do cinema ao perceber que, quando você se aproximava hipnotizada pelo meu abraço, era como se eu te sequestrasse, enclausurando você nesse mundo cartesiano, inflexível, sequencial… Enfim, este lugar onde eu me sinto mais à vontade. E quando lembro disso, vem a melancolia por te ver assim, chata e murcha fora de seu habitat, sentindo que não faz nenhuma diferença o fato de “sempre termos Bedford Falls” ou dizendo que “acha mais honesto rompermos este vínculo”. E eu me pergunto se um dia você terá força ou vontade para enxergar alguma oportunidade de compartilhar sua vida comigo, com sinceridade, equilíbrio, razão e emoção.
E o que é isso, a vida? Ubiratan D’Ambrosio sintetizou, como em uma fórmula matemática: é a relação entre indivíduo, o outro e a natureza. E isso não vai bem, ninguém pode contestar. “Faz sentido destruir uma cidade com o pretexto de não acabar com outra? Nosso relacionamento com a natureza ou com os outros tem sido desastroso: se eles incomodam, eliminamo-os”. Em consonância com as falhas de percepção detectadas pelos demais, ele nos vê “em nossas confortáveis torres de marfim, sem enxergar o mundo direito. Temos que sair, mas isso não é tão fácil”. Ora, se nós construímos ferramentas para extrair da natureza o que elas não oferece espontaneamente, sofisticamos a comunicação a partir de códigos e emoções, por que não buscar a transcendência? “Se a gente conseguir entender o que é vida e como nós atuamos, talvez possamos sair da gaiola, contrariar o bom senso, encontrar a paz e dar um futuro melhor para as outras gerações”. Paz e esperança para nós, nossos filhos, nossas conexões, a dos outros… É o que a gente precisa, não?
Sabe, talvez jamais consiga responder por que sinto algum desconforto em transitar entre o concreto e o abstrato, ainda que estes dois universos sejam criação exclusiva da minha mente. Afinal, ter emoções é uma condição humana. Tomo as palavras finais da fala de Suely Rolnik, para simplificar uma saída honrosa: “quando estamos diante da fragilidade que essa alteridade sustentada nas ilusões nos provoca, surge o auto-flagelo, ficamos apavorados, inferiorizados”. Ao mesmo tempo que as emoções nos constituem, também nos agarram. Podemos controlá-las ou reprimi-las, só não dá para não ter emoção nenhuma. Diante disso, vez ou outra eu me pergunto por que perco meu tempo tentando formalizar, interpretar essas coisas. Aquela frase do Jorge Amado, que você carrega como um mantra, de que “o real se mescla ao maravilhoso”; na verdade, o real é maravilhoso e esse é o grande assunto do autor… Minha cabeça procura destrinchar esse código em busca de algum sentido, lógica, e sem encontrar nada que a justifique, acaba sustentando meu mal-estar.
Quer saber? Eu devia era viajar para o seu mundo fantástico, te pegar pela mão e pegar o primeiro voo da Lufthansa, qualquer que seja o destino. Aliás, já te disse que adoraria aprender alemão? Acho um idioma desafiador e, ao mesmo tempo, fascinante. Eu só sei pedir batata, salsicha e contar até quatro. Talvez isso seja suficiente para embarcarmos em algum trem veloz da Die Bahn, dar uma volta e respirar história nos parques de Potsdam ou Munique, navegar em busca de paisagens bucólicas à beira do Reno, assistir a um jogo do Schalke em Gelsenkirchen e caminhar pelos arredores de Berlim, uma cidade que tem tudo a ver conosco e pode nos ensinar alguma coisa. Afinal, durante anos, um muro separou duas realidades distintas de um povo que, assim como eu e você, desejava a mesma coisa para seu futuro.
(Esse trabalho sintetiza conceitos e idéias compartilhadas durante o Seminário Internacional Emoção e Imaginação, realizado na primeira semana de abril de 2011 pelo Sesc São Paulo em parceria com a Universidade Livre de Berlim, o Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (CISC)/Comunicação e Semiótica (COS)/PUC-SP e o Goethe-Institut. Era para ser um mero artigo para validar créditos de um seminário. Mas é, de longe, o meu texto preferido.)
Essa deve ser a terceira ou quarta vez que leio esse texto e ele sempre me emociona. Que lindo ler sobre o amor. Que lindo, você, André! Um beijo