Metamorfose da velha pontezinha

“É muito fácil chegar no buraco do Marmota”, comentavam meus amigos nos intervalos do colégio técnico, depois de uma daquelas longas visitas regadas a trabalhos escolares e outras atividades lúdicas em minha casa. “É só pegar o metrô, depois o ônibus, depois a barca, atravessar e desbravar a mata, dependurar-se em cipós, escalar a montanha…”. Sim, eu realmente moro longe. Mas as dificuldades para chegar aqui são cada vez menores – especialmente vindo de carro.

Nos primórdios, em 1983, quando meu pai pilotava uma BMW (Brasília meio-velha, ano 1978), o trajeto entre a civilização e o nosso lar passava obrigatoriamente pela Marginal Tietê, Avenida Assis Ribeiro, Avenida São Miguel e finalmente a barca, a mata, o cipó… Então alguém contou ao meu pai que era muito mais rápido chegar ao bairro pela novíssima Rodovia dos Trabalhadores – aquela cinco vezes menor que a Fernão Dias, mas que custou o mesmo valor, afinal, foi Maluf que fez. A ordem era entrar no quilômetro 26, onde dizia Bairro dos Pimentas, e entrar à direita, atravessando a pontezinha.

A tal pontezinha era mesmo “inha”. O acesso simples, mas providencial, cruzava o Rio Tietê e passava pelos arredores da Vila Nitro-operária, um dos maiores símbolos do bairro de São Miguel Paulista. Desde a inauguração da Companhia Nitro Química Brasileira, nos anos 30, aquele pedacinho da cidade se desenvolveu bastante, e muita gente se estabeleceu ali, construindo não apenas a região, mas sua própria história. A pontezinha, assim como boa parte das instalações da redondeza, era mantida pela Nitroquimica. Era muito estreita – cabia apenas um carro na largura – e era sustentada por postes vermelhos e cabos de aço grossos. Imagine uma Ponte Hercílio Luz em escala reduzidíssima.

A boa nova se espalhou rapidamente. Nos anos 80 e 90, atravessar a pontezinha tornava-se um suplício cada vez maior. Não apenas para os moradores da Vila Nitro-operária, que viram a simpática vizinhança se transformar na principal saída do bairro para o centro, mas também para os motoristas, que encaravam longas filas nos horários de pico. Isso nos dois sentidos: no fim da tarde, o acostamento do km 26 da Trabalhadores (atual Ayrton Senna) era o horror. A balbúrdia diminuiu quando instalaram um semáforo para controlar quem vai ou volta – sim, senhores, durante anos a passagem pela pontezinha era negociada ali mesmo, com acelerador e luzes. Evidentemente, um sinal verde ou vermelho ainda era muito pouco.

Sempre imaginei que a grande celeuma sobre “quem cuida da pontezinha” não estava na Nitroquímica, mas no poder público. Nesse trecho, o Tietê é a linha imaginária que separa São Paulo de Guarulhos. Assim, é muito fácil uma cidade atribuir a outra uma atitude para melhorar o traslado. Até que, em 1999, um prefeito de pulso firme e personalidade marcante mostrou toda sua coragem e atitude para substituir a pontezinha e construir um acesso de verdade.

Parece mentira, mas estamos falando de Celso Pitta. A nova pontezinha poderia ser propagada pelo ex-prefeito como “o verdadeiro fura-fila”, mas nem isso foi possível. O fluxo de carros era cada vez maior, e o acesso para quem vinha da Nitroquímica, do Bairro dos Pimentas ou nos dois sentidos da rodovia, incluindo um viaduto estupidamente estreito sobre a Trabalhadores, ainda é o mesmo em vinte anos.

Como todo castigo para pobre é pouco, mesmo com a nova pontezinha (batizada Senador José Ermírio de Moraes, ex-presidente da Nitroquímica), as ruas estreitas da Vila Nitro-operária ainda impediam o acesso a caminhões. Obviamente nenhum motorista ligava para isso. As zebras da boléia sequer ligavam para as barreiras de concreto e ferro, que deixavam os acessos ainda mais estreitos, apenas para veículos de passeio. Passavam por cima sem piedade.

Finalmente, no final de julho, a boa e velha pontezinha ganhou mais uma metamorfose, parceria perfeita entre Nitroquímica, prefeitura e eleições. Uma linda e larga avenida batizada de Eduardo Sabino de Oliveira, além de uma segunda ponte, duplicou a parte paulistana do acesso, permitindo não somente a passagem de caminhões, mas também o fim dos antigos comentários ao estilo “mas que bocada é essa, Deus do céu”. Dá vontade de chamar todos os amigos para virem aqui em casa e contar. “Viram como ficou legal? Se eu não contasse, jamais acreditariam que aqui tinha uma pontezinha”.

Tudo bem que, como muitas das sensacionais obras da nossa engenharia lusitana, as muitas faixas de rolamento viram apenas uma assim que se chega ao outro lado da pontezinha, passando pelo viaduto estúpido até a estrada. Mas depois de uma obra dessas, pedir para todos os meus problemas acabarem seria demais. E ainda corro o risco de ouvir um “não reclama e mude-se logo daí”.

Comentários em blogs: ainda existem? (7)

  1. marmota veja só, o pitta heim? mas isso serve pra corroborar a minha opinião de que nada é totalmente ruím (com exceção do disco do osvaldo montenegro).
    outra coisa, eu conheço aí, é longe pracalambas, o elias mora aí depois dessa entradinha, e parecia bocada mesmo. que bom que agora está melhor, e se está melhor, pra mudar daí?

  2. Como é mesmo aquela frase?

    “Não importa em que lugar do mundo esteja, pobre sempre mora longe”

    Brincadeira! Eu, aqui na capitar paranaense, moro numa vila cheia de manos e traficantes. Inda bem que passo o dia na faculdade.

  3. Eu sei muito bem o que é isso pois praticamente nasci nessa Vila Nitro Quimica, hoje moro em Campinas. Morei nessa rua (avenida 4) que da acesso a ponte e antigamente havia duas fileiras de casas da Nitro Quimica.Por acaso alguem tem fotos daquela época?

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