Logo ali, onde você vai estar

Por Kandy Saraiva, do blog Idéias na janela

É logo ali que o mundo acaba. Ou logo ali que ele começa. E não é porque é redondo, mas porque o desconhecido é sempre assim: fim-de-mundo disfarçado de mapa.

Muitos viajam assim, carregadinhos de informação dobradas em origamis de geografia. Os mapas ajudam um bocado, mas é preciso saber interpretá-los. Às vezes isso requer tanto tempo que é melhor arriscar e encarar aquela rua esquisita logo ali, o caminho de areia que vai dar não-sei-onde, a estrada deserta pontilhada de interrogações, aquele nada enorme que cresce a cada hesitação.

A aventura de viajar é justamente não ter medo de perder a direção. Roteiros são sempre bem-vindos, mas, geralmente, os lugares e as pessoas mais interessantes se escondem deles, porque o anonimato é discreto demais para aparecer em guias. Basta ser um tantinho ousado, um bocadinho curioso, ouvir os incessantes “o que tem lá?” e “o que é aquilo?”.

É, você pode, sim, eventualmente, achar que perdeu a viagem, mas depende mesmo da maneira de andar, digo, de olhar. Mesmo num fim-de-mundo logo ali, sempre há o que observar, ainda que seja silêncio. Tudo diz muito sobre um lugar. Pode ser uma senhorinha estendendo roupas brancas num varal improvisado, uma banca de frutas exóticas se exibindo num colorido absurdo, janelas fechadas alinhadas de um modo estranho, um pedinte dando comida a pássaros imaginários, jardineiras floridas como que por encanto, cheiro de comida doce, ar salgado, água pura, fonte da juventude, cenário de filme, uma venda tímida com barba atrás do balcão, chocolate quente esquentando neve, chuva torrencial estragando passeio… logo ali sempre tem alguma coisa que merece ser descoberta.

Na ânsia de guardar tudo, você pode sair anotando desvairadamente suas impressões num caderninho, pode tentar gravar sua voz em algum meio eletrônico sempre insuficiente para tanto deslumbre, ligar para a família falando entusiasmo ou ficar quieto, bem quietinho, sorrindo por dentro de satisfação. Pode escrever cartões-postais tentando espremer encanto para mandá-lo pelo correio (será que chega?), comprar algum pedacinho da visita e levar no bolso de recordação ou ficar quieto, bem quietinho, chorando por dentro de frustração, porque, por maior que seja o esforço, a realidade combinada à observação não cabe em bolsos, malas ou envelopes. Só mesmo na imaginação.

Mas, e a câmera fotográfica com aquela resolução bacana de retratar poros? É, geralmente é bem útil em ocasiões assim, tão metalingüísticas, quando se deseja propagar ao mundo o próprio mundo: seu ou o que você vê, uma vontade formigueira de repartir o brilho dos olhos com quem não pôde ir junto e com quem nunca irá, com aquele amor que ficou esperando ou que nem sabe onde você está, com quem o ajudou a chegar lá e que sempre vai estar logo ali, para o que você precisar.

O único detalhe importante que guia nenhum explica, mapa nenhum direciona, turismo nenhum ensina é que, se você souber fotografar, seja de que jeito for, o silêncio, o anônimo, o comum, o escondido, o não-sei-quê, a ausência de cor, o sabor, sensações e lembranças, então, é porque você aprendeu a viajar. E não precisa ir longe: logo ali vai bastar.

Enquanto Marmota usa a maquininha do Lello para fotografar, a série Colônia de Férias apresenta textos (e fotos) gentilmente preparados por seus amigos, torcendo para que você sinta cada minuto de sua vida.

Comentários em blogs: ainda existem? (7)

  1. …” ou ficar quieto, bem quietinho, chorando por dentro de frustração, porque, por maior que seja o esforço, a realidade combinada à observação não cabe em bolsos, malas ou envelopes. Só mesmo na imaginação”

    Perfeito. nada a declarar. bela viagem.

  2. “Origamis de geografia”, “estrada deserta pontilhada de interrogações”, “um pedinte dando comida a pássaros imaginários”… Eis um texto que merece ser lido com o mesmo espírito de um turista que se esquiva do formato engessado dos pacotes que empacotam pra viagem (literalmente) paisagens e monumentos, e prefere perscrutar os atalhos ainda não perscrutados pelos mapas já pasteurizados. Belo, belo texto, Kandy! 🙂

  3. “O único detalhe importante que guia nenhum explica, mapa nenhum direciona, turismo nenhum ensina é que, se você souber fotografar, seja de que jeito for, o silêncio, o anônimo, o comum, o escondido, o não-sei-quê, a ausência de cor, o sabor, sensações e lembranças, então, é porque você aprendeu a viajar. E não precisa ir longe: logo ali vai bastar.”

    Belíssimo. Nota 10 pro texto, um dos mais belos que já li sobre a arte de viajar. Parabéns!

    (Estou literalmente sem palavras para expressar a real beleza q invadiu meu ser ao ler esse texto. E fico com as expressões-chavões, verdadeiras q são: demais, perfeito.)

Vai comentar ou ficar apenas olhando?

Campos com * são obrigatórios. Relaxe: não vou montar um mailing com seus dados para vender na Praça da República.


*