Escolha uma forma de enxergar a realidade

“São inúmeras as narrativas do mundo”. Esta frase, atribuida ao filósofo francês Roland Barthes, nos faz lembrar da fragilidade do termo “realidade”. Aliás, podemos combiná-la com outra, também comum nas salas de aula dos cursos de comunicação, de aparição consagrada nos arquivos ppt do autor desconhecido e incerto: “beauty is in the eyes of the beholder”. A beleza de algo, a falta dela ou sei lá como desejarmos classificar, está nos olhos de quem vê. Uma combinação fluida de olhares, engedrada por meio de variáveis relacionadas a valores subjetivos e apresentadas pelas linguagens que compreendemos (gestos, escrita, imagem, som…), compõe uma meia dúzia de três ou quatro ideias que podemos batizar, grosso modo, formas complexas da representação do que consideramos, eu, você e a sociedade, realidade.

Entendeu? Não? Quer que eu desenhe?

Basicamente, é possível enxergar a realidade por meio de muitas lentes. Uma das mais interessantes (e antigas) é a que nos revelam mitos. Histórias como as contadas numa Grécia em que deuses e semideuses não se preocupavam exatamente com a relação entre calote e a existência do Euro. Cuidado para não confundir mitologias com outra forma de percebermos o mundo pautada pela sabedoria do povo: o senso comum. Aquele negócio que, como lembra Duncan Watts, torna possível a coexistência de “o que os olhos não veem o coração não sente” e “longe dos olhos perto do coração”, entre outras justificativas que costumamos acionar para preencher lacunas quando a situação parece incompreensível.

Há outro tipo de explicação baseada em histórias fabulosas para explicar questões sem respostas: religião. O que muda em relação a mitologias ou senso comum é o tamanho da crença, proporcional ao conforto emocional (e algumas limitações) que ela pode trazer. Uma frase do pesquisador norte-americano Joseph Campbell explica tudo (e um pouco mais) de um jeito simples: “mitologia é o nome que damos às religiões dos outros”.

Algumas destas se apresentam como “o caminho da verdade”, um negócio que dá para desconfiar. A que nos vende “nada mais que a verdade”, no entanto, o jornalismo – ainda que esta categoria possa abusar nas crendices na tentativa de mergulhar na realidade. Quando associamos o termo “verdade” a teorias construídas por métodos rigorosos, temos a ciência. Não deixa de ser humana como as outras representações, e até por isso “se parece primitiva e infantil – e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos”, como dizia Albert Einstein. Todas estas manifestações mexem com os nossos sentidos – e aqui cabe a forma de representar o mundo cuja intenção primeira é exatamente o estímulo dos nossos neurônios: a arte.

Enfim. Se você nào se desplugou do mundo nesta quinta-feira, deve ter visto o julgamento do Supremo Tribunal Federal diante de um assunto delicado: a possibilidade das mulheres escolherem, sem medo de serem punidas pela lei, abortar a gravidez nos casos de fetos sem cérebro. É o tipo de debate que permite reunir toda sorte de gente sustentando suas lentes e apontando aquilo que enxergam como sendo a melhor forma de representar a realidade. Nenhuma delas definitiva.

Mesmo entre os magistrados há divergências: desde “dogmas religiosos não podem guiar decisões jurídicas” até “não há garantia de que os conceitos científicos sejam estáveis” – num discurso que conseguiu reunir o rebaixamento de Plutão, vírus de computador e bebês anencéfalos… Nos arredores da mesa redonda, protestos a favor da vida – e, a essa altura, você já percebeu que o conceito de “vida” depende do óculos que estiver usando, da posição e do tamanho da janela. Pode parecer simplista (ou algo ligado ao meu senso comum), mas independente do resultado, seria melhor viver num mundo onde as discussões se limitassem ao ato de compreender, respeitar, aperfeiçoar ou, vez ou outra, simplesmente usar um Ray-Ban de armação fina e vidro amarelo.

Ah sim, há alguns anos, escrevi sobre aborto aqui. Não mudaria uma vírgula.

Ah sim, de novo, aceito sugestões para uma segunda versão da ilustração acima, incluindo sugestões para o par de lentes do Direito.

Comentários em blogs: ainda existem? (4)

  1. Tem uma palavra-chave nessa discussão, e no seu texto também: ESCOLHA. “A possibilidade das mulheres escolherem”. Nada mais a declarar.

    Enquanto isso, eu vou ficando com a lente da arte mesmo.

  2. É complicado… cada um enxerga a situação pela lente que é mais apegado. Não que seja a correta, ou a incorreta…

    Nesse caso eu estava torcendo pra ser aprovado o aborto: acho desnecessário prorrogar o sofrimento dos pais e da criança em gestação.

    Mas conheço amigos, formados e até da área da saúde como eu, que olham mais pela lente da religião.

    Difícil julgar certo ou errado e ainda bem que a questão não é essa.

    Como disse sua amiga, no post linkado, a chave é esclarecimento e assistência.

  3. Pois é, grande André. O grande problema é que a religião não envolve lógica, não envolve sensatez, não envolve razão. A religião é puramente emoção e sentimentalismo. Maior prova está no pensamento dos que pregam a impossibilidade do aborto do anencéfalo: pra eles, é mais justo que a mãe possa perder a vida do que tirar um feto que já não tem vida.

    É a velha história do dizer que “se não fizer o que eu digo, vai pro inferno”. Uma pena. Se o próprio Deus nos deu livre arbítrio para que possamos fazer o que bem entender, porque um padre ou um bispo poderia me obrigar a algo? Incoerente, no mínimo.

    Um abraço, cara.

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