Existem semanas que sequer deveriam ter começado e insistem em não terminar. Dizem que são dias assim que nos tornam melhores, pois é da adversidade que brota a força para lutarmos rumo à vitória. Quer dizer, isso quando as cacetadas sucessivas ou a mega-porrada não provocam o efeito inverso, anulando qualquer poder de reação.
Mas enfim. Dias como estes pedem uma única cura: fugir da rotina e chacoalhar a mente com uma atitude diferente do ocasional. Ainda que isso represente largar o carro num estacionamento qualquer e seguir viagem a pé, suando enquanto outros pensamentos caminham juntos. Mesmo uma ação trivial como esta pode representar uma surpresa após a curva.
E ela estava lá, na estação Trianon-Masp, na saída mais comprida rumo à Pamplona, sentido Jardins. Minha expressão abatida mudou quando vi um painel com a imagem e o nome de Mario Quintana. Reduzi o ritmo e parei diante daquela sequência de imagens e textos. Nem me importei com o horário ou com o movimento tresloucado dos pedestres que, solenemente, ignoravam minha presença atenta a cada detalhe.
A exposição itinerante, que certamente já tem alguns anos, é uma iniciativa do projeto Embarque na Leitura, excelente iniciativa do metrô paulistano que integra longos deslocamentos com livros emprestados desde 2004. Cinco estações (Luz, Paraíso, Tatuapé, Largo Treze e Santa Cecília) possuem minibibliotecas, onde o usuário pode retirar um livro e entregá-lo em até dez dias.
Fora isso, o projeto também já promoveu tarde de autógrafos, bate-papo com escritores, contagem de histórias, distribuição de livros e os tais painéis que homenageiam escritores brasileiros. Tem do Machado de Assis, da Cora Coralina, do Ignácio de Loyola Brandão e, por último mas não menos importante, do Poetinha.
Os primeiros painéis mesclam fotos de toda sua vida com um resumo biográfico sucinto e direto. Lembra seu nascimento prematuro, seu primeiro emprego na Livraria do Globo, sua passagem na farmácia do pai e o contato permanente com a língua francesa, fato que contribuiu para seu sucesso não só como como tradutor de obras clássicas, mas também ao extrair a poesia das palavras.
Em outros painéis, poemas trazem o lado irônico da vida e da morte, além de frases pinçadas do Caderno H, do Correio do Povo de Porto Alegre – que levava esse nome por ser feito “na última hora, na hora H, na hora final”. Duas mensagens clássicas me fizeram sorrir de verdade. A primeira reproduz um texto autobiográfico, publicado na revista IstoÉ em 14 de novembro de 1984:
Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas… Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade.
Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro – o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! “Excusez du peu”… Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros?
Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Verissimo – que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.
A outra mensagem, talvez a mais conhecida, é o “poeminha do contra”, escrito numa época em que Quintana tentara por três vezes uma vaga na Academia Brasileira de Letras, sem nunca ter conseguido. É praticamente uma ode à obstinação, um lembrete aos que sentem vontade de jogar a toalha diante de qualquer adversidade provocada por incômodos:
Todos esses que aí estão
atravancando meu caminho,
eles passarão…
eu passarinho!
É uma pena que dificilmente eu vá passar ali outra vez, e mesmo que tivesse a oportunidade cada vez que sentisse minhas baterias fracas, esse tipo de exposição itinerante fica por pouco tempo em um mesmo lugar. Preciso providenciar logo alguns cartazes com estes dizeres, pendurá-los em vários cômodos da casa e do trabalho, acompanhado por um galho de arruda. E quando tiver uma casa com quintal grande, painéis semelhantes e coloridos ficarão logo na entrada, distribuindo sorrisos singelos como um poema do Quintana.
Ahn sim, não deixe de ler a reação do nosso vizinho Alexandre Carvalho dos Santos, que esbarrou nestes mesmos painéis há um ano e meio…
Atualizado, graças ao meu celular novo, pude enriquecer este post com algumas imagens.
Um autêntico MMM, passarinho. 😉
Você descobriu, sem querer, um dos meus segredos de bem-viver. Mario Quintana. Adoro. Mesmo após ter lido várias vezes alguns de seus livros, seus versos ainda me surpreendem. Mario Quintana me faz bem. Já tive oportunidade de ir a Casa de Cultura Mario Quintana em Porto Alegre, e ter passado várias horas na livraria O Globo, nesta mesma cidade, onde também trabalhou o Érico Verissimo. Mario Quintana é bom, é simples, é simplesmente bom. As vezes sua simplicidade chega a contranger, quando lemos em voz alta o seu poema para alguem que gostamos e este nos olha de volta pensando “você chama isso de lindo? Isso é bobo demais…”. Talvez por isso Mario Quintana fale que as poesias devem ficar longe das declamadoras, devem ter seu lugar resgardado nos livros. Poesia, a dele pelo menos, é para ser lida com outra voz. A voz da intuição, do sentimento.
Sei lá. Adoro isso.
Um grande, amazônico, abraço.
SELVA!!!