Casa vazia

“Onde botei a chave?”, penso, atrapalhado, enquanto reviro as frestas possíveis no carro. Talvez seja o caso de desligá-lo antes de continuar… Sim, mais seguro e econômico. “Aqui! Junto com esses papéis velhos no porta-luvas”. Respiro antes de abrir a porta, sentir a garoa fina e finalmente reencontrar meu passado.

“Eu nunca sei qual é a chave certa”. É verdade. Mas dê um desconto: não é um simples reencontro. O portão engata quando puxo, deve ser a poeira. Piso no quintal e sorrio, esperando ingenuamente por alguma reciprocidade. Ela nunca vai dizer “também senti sua falta”, não se iluda. “Ah, ao menos você veio dizer olá!”, invento, ao ver uma baratinha correndo para a rua enquanto apanho a correspondência acumulada.

Nenhuma notícia nova, está tudo bem, agradeço a preocupação. “Quero sentir você, vai”. Então eu tiro o sapato, fecho os olhos e deixo o piso gelado me conduzir para algum momento repleto de abraços – porque um abraço como o seu é dos melhores lugares para se estar. Não me dou conta, mas essa ideia genial encardiu a sola dos meus pés. “Puxa, é muita poeira junta, né?”.

Entro na sala e sinto aquele aroma de portas e janelas fechadas por longos dias. Acendo poucas luzes, deixo as cartas amontoadas no sofá, vou charlar com as fotos da estante (“aê, galera, cheguei!”) e, em seguida, com a geladeira – talvez tenha que viver sempre ao lado de alguém para manter a sanidade. “Então, o que você tem pra mim?”. Nada. “Mas nem uma água gelada?” Arrisco o filtro da torneira. Um único gole, com gostinho de volume morto sedimentado.

“Melhor ligar a TV, quem sabe a gente consiga falar sobre amenidades”. Entro num quarto. Telefone desligado, rádio-relógio piscando num horário qualquer. “Ih, faltou luz recentemente”. É a vez do banheiro. Ao menos por cima, parece usável. Uia! Cabelinho! Ou sujeirinha, sei lá. Nova ideia genial: limpar os pés na pia. De volta para a cozinha, poucas gotas que escorrem pelo tornozelo revelam rastros negros… “Vou ter que chamar a Creuza pra um frila qualquer dia desses”.

Finalmente, meu cantinho. Abro a janela e vejo dois ou três livrinhos fora de contexto, além de algumas camisas de clubes que não me servem mais, em cima da cama. Jogo tudo no chão (ah, dane-se a poeira) e deito por alguns minutos. “Você ficou tão pequena…”. Incrível como cabiam tantas estripulias nela. Procuro pela medalhinha de Aparecida que minha mãe cravou no travesseiro. Lá está, ainda impregnada pelos sonhos que viraram fumaça e atravessaram as rachaduras que brotam do teto.

Deixo para o final o quartinho de jogos. Aquele onde eu passei uma vida inteira “jogando” tralhas em armários, prateleiras… “Caramba, então meu CPF estava aqui!”, sorrio, com surpresa. Deve ter mais coisas que vou gostar de encontrar sem estar procurando. Ou quase. Tem aquela bombona azul de plástico. Mais barata que aquelas caríssimas caixas organizadoras da Toque Estoque. Também é mais difícil abrir. Sempre tive sérias dificuldades em compreender o significado da palavra “desapego”. Como se fosse sinônimo de “descartável”. Como se isso fosse ruim. Ainda não sei. “Alguém para manter a sanidade, lembra?”. É.

É preciso ir, estou longe e não posso me atrasar. “Nosso tempo já passou”, resmungo, sentindo aquele mesmo arrepio que vem da ausência. “Preciso desligar a TV e… Não estou esquecendo nada?”. Talvez devesse ter molhado as plantas – mas bem antes delas se tornarem folhas e galhos secos. Enfim, tem algo errado com as cores da tela, o tubo deve estar gasto. Sobre o que é esse programa? Turismo, parece. “Você pode revisitar seus lugares favoritos quando quiser, mas não precisa ficar preso a eles. Guarde boas lembranças se isso te fizer sentir vivo, mas lugares novos vão proporcionar mais cores e sabores em sua vida”. Clic.

Fecho o portão e… Ora, que surpresa, deixei o carro aberto e ligado naquela nossa rádio. Ouço, então, uma prece: que a música que ouço ao longe seja linda, ainda que tristeza, mesmo que distante… Que o seu silêncio me fale cada vez mais. E que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço.

Pois metade de mim é partida. A outra metade é saudade.

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