Ano passado eu morri mas este ano eu não morro

Dava para ver duas mãos em forma de concha para fora da janela. Terceiro? Quarto andar, talvez. Era domingo… Agosto. Ventava, lembro de algumas cortinas balançando.

Tarde estranha. Aquele par de mãos fechadas, braços esticados, estáticos…

Finalmente, após longos minutos, ouviu-se um grito. A voz era confusa e melancólica.

– Chega. Cansei.

Aqueles braços fraquejavam, relaxavam. enquanto o sol ia embora. Mas as mãos continuavam juntas, como se quisessem proteger algo.

– Ai, como eu queria. Você sabe o quanto eu lutei, sentiu toda a força do meu desejo. Vivi cada instante de dor, tristeza e sofrimento. Como deve ser um grande amor.

A voz melancólica e confusa era efusiva, dramática. Ao mesmo tempo, era rara: declarações exuberantes se alternavam com longos e profundos momentos de silêncio.

– Eu sei muito bem o que eu quis pra mim. Queria muito estar aqui. Agora não sei mais… Você não entende, não é? Tenho sangrado demais… Tenho chorado pra cachorro.

Já era noite quando os gritos aumentaram, na mesma medida em que as mãos trêmulas fizeram força.

Apertavam, sufocavam. Angustiavam.

Deu para ver uma gota de sangue escorrendo com pressa. Deve ter se misturado com suor. Ou lágrimas.

– Está sentindo? Se continuar assim, vamos ficar para sempre nesse sacrifício. Precisamos ser livres. Fizemos nossa jornada, mas o tempo dela passou. Você sabe disso, nem preciso te perguntar. E ainda vai me agradecer por este gesto de coragem!

Então o vento carregou de suas mãos abertas um tipo de poeira brilhante. Não deu para ver para onde foi, se caiu na rua, se voou sem rumo. Perdeu-se no ar.

Pude ouvir uma última frase antes da janela fechar:

– Então é assim que se morre… Ainda sinto nas mãos a história que nunca vou ter.

***

Dias atrás, contei essa história para um amigo.

– Morte na sacada? Sangue nas mãos? Para com isso, que viagem mais besta!

– É… Por isso que eu bebo.

– Mas não tem isso de se sacrificar e ser livre. Nossa vida é mais complexa e cheia de altos e baixos. Essas coisas emocionadas só acontecem nos filmes. Já viu “Na natureza selvagem”? Pois é. Quer ser livre? Então vai correr do urso polar no meio da neve, oras!

– Pode ser… Mas ainda fico intrigado com o que havia naquelas mãos. Sei que devia abstrair, pensar no que realmente importa… Só que aquela cena não me sai da cabeça, sabe?

– Ih! Relaxe, meu chapa. Pense: qualquer coisa que a gente deixa cair pela janela é irrelevante.

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