A intolerância sob os olhos de um garçom

Enquanto a maioria dos brasileiros vagabundearam ou reclamaram do plantão no último dia 16 de novembro, o mundo celebrou o Dia Internacional da Tolerância. Na verdade, a data deveria ser clichê como o Dia das Mães ou o da Criança: lembrada e comemorada todos os dias. Afinal, o que não falta nesse mundinho besta é gente arrogante, prepotente, egocêntrica, violenta e indiferente, todas o pretexto de “se desenvolver e atingir destaque em nossa sociedade” – ou pior, sem pretexto algum.

Mas enfim. O desabafo acima é só uma introdução metida à besta para um caso de intolerância particular. Sempre achei que tivesse paciência o suficiente para viver sem esquentar com qualquer bobagem – até porque, a vida nos oferece um prato cheio de xiitas verborrágicos e covardes acomodados para derreter os miolos. Infelizmente, constatei esses dias que não é bem assim. Aliás, foi justamente em 20 de novembro, no tal “dia da consciência pesada”.

A noite estava chegando ao fim, e uma porção de gente descolada ocupava todos os espaços de uma pizzaria-balada na Rua Augusta, bem na frente da Fernando de Albuquerque. Em nossa mesa, alta rotatividade de gente muito bacana: foram quatro horas de bate-papo da melhor qualidade. Tudo caminhava na mais perfeita harmonia, até eu pedir minha segunda latinha de Coca Cola.

O garçom, espécie de Paulinho da Viola mais novo (e tão discreto quanto), havia esquecido da primeira ordem: foi necessário um cordial “chefia, eu pedi uma Coca há uns dez minutos, acho que não anotaram”. Repare no discurso impessoal, sem qualquer ofensa. Pouco tempo depois, lá vinha o Paulinho (já devidamente batizado assim) com três latinhas.

– Olha, rapaz, a Coca Cola acabou. Mas eu tenho Fanta uva, Fanta normal e Sukita.

Mas que decepção.

– Como assim? Nem Guaraná? Nem Soda? Só isso???

Era só isso. Fui obrigado a pedir uma água, sem gás.

– Tá vendo? Se você gostasse de cerveja, não passaria por esse perrengue – disse um amigo. Pura intolerância com quem não bebe.

As chegadas e partidas em nossa mesa permaneciam intensas. Paulinho quase não aparecia, apenas trocava uma garrafa âmbar vazia por outra. Até que uma das moças decidiu pedir um refrigerante.

– Ih, nem adianta. Ele vai vir com três latinhas intragáveis para você.

– Sério? Mas não tem Coca Light? – perguntou ela.

Sem piscar, Paulinho respondeu: – Tem, sim.

Foi meu primeiro olhar de incompreensão em direção ao garçom, que certamente nem lembrava mais por quê motivo eu estava com aquela cara. A mesa já estava em contagem regressiva para zarpar, e eu já tinha pedido três garrafinhas de água sem gás. Até que o último dos retardatários decidiu fazer seu primeiro pedido.

– Aí, chefia! Tem Coca Cola?

Respondi pelo garçom: não tinha mais, só aquelas laranjadas fosforescentes e aquela outra coca com gosto de caramelo.

– Tem, sim. Vai querer? – corrigiu Paulinho.

Ah, não. Levantei da cadeira, ergui as mãos e agi como um segurado do INSS na fila. Mas que palhaçada é essa? Então por que eu estava tomando água???

– É que chegou, moço. Quer também?

Obrigado por avisar, seu palhaço. A mesa logo reagiu, contendo os meus ânimos.

– Calma, cara. Relaxe. Não fique assim, senta aí e desencana. Fique feliz, a noite está tão bacana…

– Olha só, vou me colocar no lugar dele. Já é tarde da noite, e o cara está trabalhando sabe-se lá quantas horas. E é feriado. Você passou o dia tranquilo, como a maioria aqui. Ele não, coitado. Dê um desconto a ele.

Pronto, a incompetência do Paulinho havia me transformado num intolerante cruel. Mais um desses cidadãos alheios à pobreza do mundo. E não estou me referindo aos valores materiais, mas ao maior deles: a nossa própria vida, e o quanto cada um de nós é único, formando uma rica e fértil diversidade cultural. Isso deve ser preservado, respeitado e defendido. Não devíamos segregar o outro por qualquer razão, mas sim valorizarmos essa riqueza e ter prazer com ela. Deixemos nossa intolerância para o que realmente merece: ela mesma. Um viva às diferenças e ao Paulinho da Viola.

– Isso mesmo. Vai lá, pede uma Coca Cola e seja feliz.

André Marmota dialoga muito com o passado, cria futuros inverossímeis e, atrapalhado, deixa passar algumas sutilezas do presente. Quer saber mais?

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Comentários em blogs: ainda existem? (9)

  1. Rapaz, eu tomo até destilado de fio de cobre mas não tomo coca-cola, nem a água da coca-cola family eu bebo. lance de ideologia mesmo, alguma a gente tem de ter né. rss

    abração queridão

  2. Olá. Já há algum tempo eu venho acompanhando seu blog. Adoro seus textos e você está de parabéns.
    Mas quanto ao garçon eu discordo de você. EU acho que se ele está atendendo tem que atender bem. Ele é pago pra isso. Igual eu sou pago pra desenvolver código. Se não gosto ou não suporto eu que arrume outra ocupação.
    Desculpe, mas esse é meu ponto de vista.
    Abraços.

  3. Não me despertou o desejo de ser mais tolerante, ao contrário, me imaginei com as mãos na cadeira berrando pela presença do gerente. Certa vez eu ouvi de um gerente, que defendia o empregado incompetente: “ah, mas fulano vai acabar pagando do bolso dele por isso”. Sério? Então uma vez ao ano eu reflito, no dia da consciência pesada, talvez.

  4. Faz algum tempo que aprendi a transformar o ônus em bônus, a tempestade em arco-iris, o revês em alegria.

    Se o garçom tivesse servido Coca-Cola desde o início, você não teria escrito este post. Pra alguma coisa boa, o incidente serviu.

  5. Tolerância é uma coisa totalmente desnatural pra mim. Então, pra agir de forma minimamente normal – quer dizer, sem atacar violentamente várias pessoas por dia -, tenho que o tempo todo fazer esse tipo de meditação que seu texto nos sugere. O tempo todo tenho que me exercitar na empatia, em me colocar no lugar do outro, em ‘ter a dor do outro no meu coração’. Nem sabia que existia o Dia da Tolerância. Mas dizer que todo dia comemoro isso não é clichê: é pura sobrevivência.

  6. Caro , Deve -se lembrar que a obrigação de um estabelecimento de gastronomia e ter o que está em seu cardapio,
    Neste caso até concordo que por um lapso o Paulinho da viola esqueceu de lhe avisar que tinha coca cola.
    Porém cabe ao estabelecimento ter o produto em quantidade suficiente para atender a sua demanda, no seu lugar teria me exaltado com o responsável do local, e dizendo ao paulinho que mancada só porque ela é mulher tem coca.

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