Ouvi esses dias de uma amiga incrível respostas indiretas para algumas das minhas perguntas impossíveis. “Aceitar o que não temos controle é uma das coisas mais difíceis. É reaprender espanhaa andar sozinho. Agora, para manter a sanidade, tudo que for diferente ajuda. Guarde longe dos olhos o que te trouxer lembranças. Eu sei que é tudo, mas algumas coisas são mais”.
Sim, amiga incrível. Tudo me traz lembranças. Até mesmo ouvir o sorteio da Copa no trânsito. Igual a outra sexta-feira à tarde, em dezembro de 2009, antes de mais uma deliciosa espera no terminal de Guarulhos. Ela estava radiante e esperançosa, trazendo na bagagem desejos de Belo Horizonte.
– Nossa chave é complicadinha, meu anjo. Tirando a Coréia do Norte, que é uma baba, vai ter Portugal e Costa do Marfim.
– Quuuêêêêêê Costa do Marfiiiim!!! Vai dar Brasil!!!
Nós rimos e partilhávamos nossos sonhos como normalmente acontecia quando estávamos juntos.
– Você aqui e eu em BH. Vai ser lindo, vamos nos encontrar muito. E quando terminarmos nossos mestrados, a gente se casa. Você sabe que te amo muito, que quero uma família contigo. E nós não vamos desistir.
Não deu Brasil. Não deu em nada. Sigo um caminho diferente, mas ainda prestando atenção nas bolinhas que novamente formarão a trilha da seleção. Também estava louco para saber quem encabeçaria o grupo H: quis o sorteio da vida me mandar cobiçados ingressos do Mundial para… Adivinhe.
– Mas você não gosta de Belo Horizonte…
Esse queixume reapareceu antes dela partir. Foi na mesma semana em que dizia “vamos ver um jogo da Copa juntos”, falávamos em financiamento de casa e em lua de mel no Japão. Comparando com essa decisão maluca, é bem mais fácil entender as razões das palavras desnecessárias direcionadas à capital mineira. Enfim, imagino que ela desconfiava: não existe razão sustentável para qualquer mortal desgostar de Belo Horizonte.
Meu problema com BH é o mesmo com sorteio da Copa: as lembranças.
Quer dizer, pensar que a relação intensa com uma cidade coaduna com um eventinho frugal da Fifa seria uma estupidez tão grande quanto jogar um amor vivo na latrina. Diferente das bolinhas dos potes, a cidade é perene ao acalentar o sonho dela, e seus descaminhos e cruzamentos pretensamente planejados mexeram com seus planos durante dois anos de descobertas. Estava longe de casa e, ao mesmo tempo, sentia-se longe quando chegava em casa.
Eu não fazia ideia, só me preocupava em estar com ela. Como no dia dos namorados que coincidiu com África do Sul e México, aquele jogo de abertura onde fomos apresentados ao Tshabalala. Nem prestamos atenção em Uruguai e França: preferi tirá-la para dançar e falar no seu ouvido coisas que a fizeram tremer dentro do vestido naquele quarto do Othon Palace. Quanta saudade, Tavito!
Mas eu não presto atenção em sinais, nunca vou saber quando as coisas vão bem ou mal. Devia ter prestado atenção quando, depois daquele pôr do sol na praça do Papa, caminhávamos na direção da Rua Ramalhete, ela veio com um daqueles papos de sei lá por quê.
– Nossa, você viu o frango que o Green levou? Que coisa bisonha… Ei, fale comigo!
– Ah… Não… Sei lá, estou pensando… Acho que você precisa de uma outra mulher.
Então a Espanha foi campeã. E a bússola do desejo dela já rodopiava e preferiu ficar sozinha. Depois daquele sorteio, eu não imaginava que isso seria possível. Mesmo que parte de mim considere isso lindamente necessário para qualquer cidadão perdido, eu tenho um lado neurótico que diz “ela te acha desnecessário e repugnante”.
Mas que merda! Caiu a Bélgica no Grupo H! Não faz sentido. A Fifa desenhou esse cabeça-de-chave para jogar em Minas, Rio e São Paulo. A bolinha gelada tinha que botar uma Alemanha ali. Mas a Bélgica?! Bom, já ouvi por aí que o time joga direitinho, é esperança de uma partida bacana. Tomara que o H2 seja minimamente bacana. Não vamos perder a esperança.
Como na tarde em que vivi meu onze de setembro particular. Fui atrás dela tempos depois da rasteira que levei. Estava decidido a reconquistá-la. Procurei pela Internet uma floricultura no Coréu. Encomendei um buquê de rosas sem mesmo saber se o cantinho existia. Deu certo: acertei o combinado antes de aparecer na janela do seu apartamento para uma serenata improvisada e chorar feito criança perdida nos seus braços.
É como se minha mente dissesse, naquele instante: “já percebeu que, com ela em Belo Horizonte, você está vulnerável, fraco, impotente”?
Mente idiota. O amor nos deixa assim em qualquer lugar do planeta. Mas algumas sinapses descontroladas sei lá de onde conectaram uma cidade gostosa como Belo Horizonte ao sofrimento que, diria Vinícius, não devemos ter medo pois todo grande amor só é bem grande se for triste. Isso não pode ser, tá errado! Parem com tudo! Argélia é o H2! ARGÉLIA!!! Tenho um ingresso para ver Bélgica e Argélia no Mineirão!!! Posso trocar por um mergulho em uma piscina com gilete e álcool gel?
Que castigo. Igual ao da última vez que estive em Belo Horizonte. Desci em Confins naquela manhã de 15 de dezembro, véspera da defesa de mestrado dela. Queria aproveitar cada instante. Sentir o momento. Fazer diferente da minha banca, quando sem saber o quanto aquilo significaria um rito de passagem, uma celebração, algo para ser sentido como a brisa do mar com os pés na areia de Cassandoca, perdi a chance de comemorar como gostaria. Com ela ao meu lado. Naquela noite estávamos juntos… Mas ela carregava aquele olhar distante, cortante.
Dessa vez, a história seria outra. Imaginei chegar ao hotel na Savassi e correr para o Coréu, simplesmente para ficar ao lado dela. Já devia saber: planos existem para serem ridicularizados pelo imponderável.
Havia chuva em todos os cantos de BH. Só consegui cumprir o caminho entre o aeroporto e o centro da cidade após algumas tristes horas. Longe dali, ela estava molhada e tensa. Somatizou as sensações como se sua performance determinasse o futuro de sua vida toda. Só consegui encontrá-la por poucos minutos naquele Subway vazio. Entendi como nunca aquele seu jeito perdido: pensei nela e em todos os meus desejos que incluíam a sua presença. Veio uma mistura incontrolável de ausências. Entrei em ruas e becos inacreditáveis para chegar naquela pracinha do Coração Eucarístico. Voltei para a Savassi com a chuva, com a falta que ela me faz.
A luz do dia 16 anunciou um clima mais ameno. Ainda úmido, mas no caminho certeiro, com incorreções imperceptíveis. Deu tempo de aproveitar minimamente aquela manhã ao seu lado, ajudá-la com o pen-drive e os slides e levá-la para aquele predinho da PUC, que remete a Escuela Mundial. Ela continuava tensa. Mas consegui me aproximar e dar um beijinho de sucesso.
– Eu gosto dessa sua calça.
– É. Também escolhi a camisa que usei naquele jantar do Chile.
– Eu sei.
Evidente. Ela sabe tudo o que vai acontecer conosco. Sempre soube, seu bobo. Mas eu também sabia que, naquela manhã, bastava que ela aproveitasse e relaxasse. E foi maravilhoso. Eu me deliciei com cada minuto daquele instante. O trabalho dela foi lido e avaliado com profundidade, mas delicadeza. E ela se defendeu como costuma fazer: com coragem e lágrimas. Ao final, enquanto a abraçava, ouvi algo que a define lindamente.
– Obrigada por tudo. Por hoje. Pelas coisas boas que você representa na minha vida.
– Ei, foi incrível! Eu é que tenho que agradecer por estar aqui, viver isso contigo…
– Não. Eles massacraram meu trabalho. Detestaram. Odiaram. Nenhum elogio. Ficou horrível. Se tivesse nota, seria oito.
Ela nem estava se referindo a Bélgica e Argélia, mas sim a um dos momentos mais sublimes que Belo Horizonte nem desconfia ter acontecido. Enfim, aquela postura dela, esse “só vale a pena se for perfeito e imaculado”, é como um vírus modificado em nossa corrente sanguínea. Fortalece nossas defesas ao mesmo tempo que carrega a doença que pode nos derrubar. Assim sou eu em BH: um sujeito sem defesa.
Começaram a vir mensagens no meu celular. “Bélgica e Argélia! Sifudeu! Hahahahahaha! Não vai chorar!”. Claro que esperava algo diferente no sorteio, mas a lição está posta. Podemos procurar pela estrada que nos leva a lugares especiais, uma busca que pode levar a vida inteira. Também podemos ligar o rádio, lembrar do que vivemos e apenas dirigir, sem se aborrecer com as imperfeições humanas. Amanhã nossos desejos vão nos levar para outra estrada, com a velocidade das suas emoções. E ninguém garante que essa trilha vai nos levar de volta para uma cidade marcada por alguma frustração passada. Vai ser inevitável desacelerar, mas seria triste demais parar no acostamento ou desviar.
Há quem tenha medo de voltar a um lugar que nos faça sofrer. Eu ainda não consigo ouvir Milton Nascimento cantar que “nada será como antes amanhã” sem sentir um alvoroço no meu coração despedaçado. Mas viver só faz sentido com aventura, e isso inclui enfrentar nossos fantasmas e conquistar novas lembranças. Exatamente como, em alguma ideia boba do passado, botei o nome da companhia que realmente desejava ao meu lado no Mineirão para assistir a esse Bélgica e Argélia.
Enfim, encostei o carro no meu destino final e, por SMS, reforcei com meu novo convidado a intenção de encarar a aventura do próximo 17 de junho.
– Cara, Bélgica e Argélia vai ser o melhor jogo da Copa. E ainda tem as belgas.
– Exatamente. E você vai ter que ser forte para ouvir “Rua Ramalhete” outra vez.
É isso. Vamos deixar tudo rolar, e o som dos Beatles na vitrola.
Tocante, como sempre. Eu fiquei anos sem “te ler” sem nenhum motivo em particular. E você também escreve bem menos hoje em dia, ou é impressão minha? De qualquer forma, parece que foi ontem que conheci seu blog e fiquei fã. Parece amizade, que o tempo não separa.
Todo mundo meio saudosista? Embora meu blog hj seja muito diferente daquele que vc conhecia, era o “C’est la vie”, hoje tento escrever o “Corre, Mulher!”, andei lembrando do Marmota e daquele dia que esteve em Curitiba e me perguntando pir que não andei mais lendo seu blog… Continua ótimo como sempre! Saudade!