Pensamentos soltos sobre web 2.0

Você já deve ter ouvido falar na professora Pollyana Ferrari, especialista em jornalismo digital (e autora de dois livros sobre o tema). Em junho de 2006, ela colocou no ar o projeto Remix Narrativo, site que se transformaria em seu objeto de estudo no doutorado. A idéia é gerar um coletivo colaborativo com intensas trocas de narrativas. Além de mapear o banco de dados para entender a estrutura das participações, a proposta é verificar o impacto do jornalismo “open source” na tradicional mídia de massa: com o poder da informação nas mãos, o homem muda completamente seu modo de se relacionar com o mundo.

Foram quatro anos, até a defesa de sua tese no final de outubro. Não foi só seu título de “doutora” que me deixou com um sorriso no rosto, mas também o fato de ter contribuído um tiquinho com seu trabalho ao responder três perguntinhas inocentes sobre esse riquíssimo período em rede. Enviei o e-mail aos 47 do segundo tempo – se por um lado o tema reacende minha vontade de investir num mestrado, a eterna procrastinação questiona meu sucesso acadêmico…

Mas enfim. Diz ela: “sua entrevista para a tese foi a mais comentada e a Lucia Leão (autora do livro “O labirinto da hipermídia), que tava na banca, quer te conhecer…”. Enquanto a Pollyana não publica sua tese, reproduzo aqui minhas respostas, todas baseadas em pensamentos aleatórios (muitos deles já reproduzidos neste espaço em momentos descentralizados). Quem conseguir chegar ao fim, pode perfeitamente dizer se o fato de uma PhD em comunicação querer conversar é algo bom ou ruim…

1) Qual sua opinião sobre a web 2.0? Que exemplos você me daria como soluções 2.0 na rede?

Não gosto da expressão “web 2.0”, apesar de respeitar seu conceito e especialmente admitir a popularização desta expressão. Nada contra o Tim O’Reilly… Digo que não gosto porque o termo foi criado levando em conta apenas os novos serviços onde o usuário colabora e organiza a informação. Como se houvesse uma necessidade de “rotular” o atual momento da web, em função das características tecnológicas.

Eu penso que a influência da rede na sociedade, envolvendo pessoas e comunidades conectadas em um ambiente democrático, sem fronteiras e colaborativo (o que chamamos de cibercultura) já traz esse conceito. Já ouvi a expressão “web 3.0”, que diz respeito a uma organização ainda mais eficiente, baseada em “mashups de softwares”, bibliotecas de códigos conjugados pelos próprios usuários… Isso me parece bobagem, especialmente num país onde, se usarmos a mesma nomenclatura, ainda estamos na “web 1.1 beta”: são apenas 20% de habitantes que já tiveram contato com a Internet em algum momento.

E destes, ainda sobram aqueles que recebem por e-mail aquele apelo ou promoção fake, aquele texto que não é do Veríssimo… Enfim, todas as bobagens que vão parar na Internet e que, no meio do mais puro entretenimento, se transforma em verdade absoluta. Quando descobrem ferramentas de busca como o Google, surge outro problema: os usuários não separam o joio do trigo. Qualquer resultado de busca, independente da origem, aparece na mesma tela. Atualmente, só existe uma forma de controlar isso: a partir do discernimento do próprio internauta, isoladamente.

Isso infelizmente só vai se concretizar quando o usuário também for “2.0”, isto é, quando outro conceito bem popular – o de “inclusão digital” – for além de um simples “entregue um computador barato e uma conexão pro nosso amigo aí”. Melhor não ir mais longe, até porque uma porção de aventureiros, interessados em expandir seus negócios na rede, também estão na fase “1.1 beta”.

Mas enfim. Sobre exemplos, desde o boom do Wikipedia, espécie de “exemplo número um” de web 2.0, muitas soluções apareceram especialmente após a popularização de serviços baseados em tags (palavras-chave, como Flickr, YouTube ou del.icio.us), sem falar no Ajax, que combina JavaScript e XML, e que está na crista da onda – eu, por exemplo, não vivo sem minha janela do Netvibes, repletas de feeds organizados por temas.

Apesar disso, eu acredito ainda mais no poder dos blogs – tanto que, entre os exemplos 2.0, é certamente o mais popular. Um blog, seja ele mantido por uma única pessoa ou um grupo bem definido, não funciona apenas como um filtro, ou um novo canal de notícias e opinião. Ele é, acima de tudo, uma página com identidade própria. E o pulo do gato é a identificação do leitor com o autor, sem intermediários. Todos discutem as idéias, concordam, discordam… Isso se amplia constantemente, formando uma verdadeira micro-comunidade: os blogs “conversam” entre si , e quanto mais gente participar desse debate, mais chances nós temos de democratizar a informação.

2) Como você enxerga a produção coletiva de conteúdo na web?

Penso que isso ainda não está muito claro, nem para quem estimula a produção de conteúdo colaborativo e menos ainda para o usuário comum. Como se ainda não fosse possível identificar claramente quem participa, quem participa e consome, e finalmente quem apenas consome – esse último grupo é o maior, e não se sabe ao certo quantos deles vão transmitir suas idéias a partir do momento que estiverem conectadas.

Ao mesmo tempo, existe uma expectativa para que a Internet se consolide como a voz de quem não tem acesso aos tradicionais veículos de comunicação de massa. Já existem comunidades restritas, que conseguem trocar idéias coletivamente e, nesse movimento, gerar conhecimento. Mas se o objetivo final é formar uma sociedade cada vez mais preparada para os desafios do nosso cotidiano, estamos bem longe. Enquanto alguns poucos recantos se interligam positivamente, a rede está sendo ocupada por uma “horda de bárbaros”, cujo conteúdo produzido e disseminado em blogs, fotologs, sites de vídeo possui caráter neutro (antes fosse apenas isso) ou destrutivo.

A coisa fica um pouco mais delicada quando nos referimos a um dos tipos específicos de “produção coletiva de conteúdo em rede”: o jornalismo cidadão (ou colaborativo, ou participativo, enfim). Já virou chavão dizer que “qualquer indivíduo com um computador ou um celular com câmera, conjugado com acesso à internet, é um produtor de conteúdo jornalístico em potencial”.

Há quem diga que todo “blogueiro” é um jornalista. Pois eu tenho algumas ressalvas. Independente de quem o faça, o jornalismo cidadão obedece os pré-requisitos da profissão: toda informação deve ser apurada, checada, com dados devidamente levantados e organizados. Dessa forma, qualquer um que tiver acesso às ferramentas, que tenha motivação para compartilhar informações e que obedeça esses critérios, pode relatar fatos em alguns cliques e se transformar em repórter, redator, editor… Existe material de sobra, todos sob licença Creative Commons (outra “marca” da web 2.0), que reforça aquelas dicas da primeira aula da faculdade de comunicação para qualquer um: definir o que é ou não notícia, ouvir as pessoas certas e os dois lados da história, checar e cuidar bem de todas as informações… Basta querer fazer.

3) A narrativa digital pode ser vista como um avanço das wikis, jornalismo participativo, social bookmarking, google news, tags, entre outras aplicações? Como você projeta este crescimento em 5 anos? E quais são suas apostas nesta área?

Pode, sim. Todas essas aplicações facilitam o entendimento e a aproximação do usuário diante desses fenômenos colaborativos. Uma visão utópica, para além desta geração (talvez muitas outras), é a do fim dos “monopólios” da informação. Pena que isso ainda pareça distante, mesmo se levarmos em conta os próximos cinco anos.

Há quem ainda ache que blog funciona como “querido diário adolescente”. Outros grandes portais, que já descobriram a ferramenta, simplesmente puseram seus colunistas para reproduzir opiniões, mas ainda não entenderam como funciona esse negócio de “conversar com os outros”. Além disso, como disse antes, as pessoas não diferenciam o link de um blog qualquer para o de um portal ou até outros sites quando ele aparece no resultado de buscas do Google, por exemplo. Pessoalmente, ainda acho que só quem mantém um blog sabe o que é. Talvez as pessoas que sequer saibam o que é um blog hoje, ou para que ele serve, diminuam com o passar do tempo, a medida em que alguns nomes ou mesmo comunidades de blogs tomem corpo e se tornem mais relevantes.

Esse processo também será lento, afinal nem todos os blogueiros estão realmente interessados em adotar essa postura colaborativa. Alguns partem do pressuposto que é muito fácil monetizar seus sites através de redes de anúncios relacionados, como o Google AdSense, e quando ultrapassam a barreira do “preciso de conteúdo relevante”, adotam uma postura individualista – como o do ouvinte daquela rádio especializada em trânsito na capital, que ao invés de informar o trajeto que fez e as condições atuais, liga apenas para perguntar como está o caminho que interessa só a ele.

O contrário também existe. Oferecer conteúdo na rede pode ser uma atividade descompromissada, sem uma “obrigação financeira ou jornalística” embutida. Aqui a analogia das redes é feita com uma “grande conversa de bar”. Tal qual fora da rede: se no dia-a-dia a maioria prefere jogar conversa fora no boteco ou na frente do portão e deixar o barco correr, quem é que vai querer perder tempo bancando o jornalista? É uma questão cultural muito forte, concebida bem longe do “mundo virtual”.

Por fim, essa mesma cultura faz com que a maioria dos potenciais “jornalistas-cidadãos” ainda se relacionem com a informação da mesma maneira que fazem há dezenas de anos: a partir das empresas de comunicação de sempre. Talvez no futuro, qualquer um pode abrir seu celular (ou um smartphone, ou um genérico) e perceber o quanto é simples participar de uma incrível via de mão dupla das comunicações a partir de uma rede pública sem fio, sendo capaz de distribuir informação como qualquer um e ter sua voz garantida, podendo ganhar força e dar a tão sonhada independência à informação. Mas sinceramente, não saberia dizer quando isso pode acontecer, nem mesmo qual o papel de quem ainda monopoliza o poder da imprensa nesse cenário – sejam elas as “familiares” de sempre, capitaneadas por marinhos ou mesquitas, ou as que estão tomando lugar delas – as empresas de telecomunicações.

André Marmota tem uma incrível habilidade: transforma-se de “homem de todas as vidas” a “uma lembrancinha aí” em poucas semanas. Quer saber mais?

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Comentários em blogs: ainda existem? (7)

  1. Cara! Depois de ter respondido a essas perguntas, tem razão da banca do doutorado querer te conhecer.
    Foi uma análise mais pé-no-chão que vi até agora sobre a web 2.0;

    De qualquer forma, vejo que a associação dos blogs com jornalismo é uma estratégia puramente de marketing de alguns blogueiros que querem dar certa “credibilidade” à ferramenta, associando-a com alguma profissão já estabelecida. Eu entendo o blog como uma ferramenta e como tal, faz-se dela o que nos der na telha. Credibilidade não está na ferramenta, mas em quem a usa.
    Quanto à geração de conhecimento, não vi isso acontecer ainda. O que vejo, isso sim, é uma grande troca de informação dentro das comunidades. Aquela falta de vontade de correr atrás das fontes de informação para se fazer o jornalismo, parece que falta também na criação desse conhecimento.

    abraço

  2. excelente entrevista, Marmota! análises muito lúcidas as da prof. Pollyana. o que mais me chamou a atenção é a reflexão sobre as fontes de informação. o sujeito que assiste o noticiário da Globo a vida toda faz o que quando se depara com o mundo de possibilidades da internet? lê sempre no G1…

  3. Ótimas respostas! Dá para pular o mestrado e ir direto para o doutorado 😀 Ou então levar o título honoris causa 😛
    De qualquer modo, é incrível como ainda tem gente [er, sites jornalísticos] que confunde o meio com a mensagem, a ferramenta com o conteúdo. Digitalizar colunas não é o mesmo que estabelecer conversações! E blogs são, essencialmente, conversações.

  4. André, parabéns pelas respostas. Há tempos venho pensando em montar um blog, mas protelei até agora por não saber exatamente qual a função do mesmo. Lendo este post, me entusiasmei mais ainda sabendo que um blog não é mais visto como meu diário pessoal e na outra ponta, também não precisa ter a cara de um editorial de um jornal de domingo. A minha idéia sempre foi de ter um canal de comunicação onde eu pudesse expor minhas ideias e trocar experiências com as demais pessoas. Não tenho a pretensão do caráter jornalístico profissional, mas gostaria muito de falar sobre meu bairro, minha cidade. Como morador de São Paulo, creio que hpa uma infindade de assuntos dos quais podemos comentar e trocar ideias.

  5. Como sempre, excelentes comentários sobre um tema sempre meio conturbado, complexo.

    Concordo com a maior parte do que você escreveu, André. Dicordo, porém, do primeiro parágrafo da terceira resposta, que versa acerca do fim do monopólio da informação. Aliás, corrija-me se entendi errado: você quis dizer que, chegará um dia no qual os grandes canais de comunicação serão substituídos pelo jornalismo cidadão/participativo/whatever. É isso?

    Se sim, eu tenho uma visão diferente e menos romântica da coisa, especialmente por causa da leva atual de bloggers bem sucedidos. Não acho que um cara preocupado em publicar fotos macabras de acidentes aéreos tenha moral e/ou condições para fazer as vezes de um G1, ou de uma Folha, para citar um exemplo.

    Acredito que blogs têm um espaço bem definido nesse mar de canais de comunicação. Vejo um blog como uma extensão da pessoa, visão esta que, acho eu, você compartilha. Sendo assim, ao invés de apenas divulgar um press release, como os jornais tradicionais fazem, os blogs dissecam o produto lançado, e emitem opinião sobre o mesmo; ao invés de apenas relatar um acontecimento, o blog expõe opiniões e sensações, ou seja, pontos subjetivos ao acontecimento do fato; ao invés de manter uma linha editorial inflexível e impessoal, têm a liberdade de intercalar conteúdo “light”, parcial e opinativo.

    Não consigo traduzir os exemplos acima numa palavra, ou num conceito, mas enfim, é mais ou menos essa a idéia que tenho dos blogs.

    []’s!

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