Ando descrente em relação ao amor, e isso é ruim. Sinto um desconforto idiota ao lembrar das coisas ridículas que somos capazes de fazer em nome de um lance ou de um romance. É como se eu vivesse num lugar onde só vale a pena existir se for com borboletas no estômago, ouvindo Milton Nascimento e Flávio Venturini cantando Nascente. Seja o rapaz que desiste do Tinder após se apaixonar loucamente por uma foto até a louca que corre atrás do seu viúvo numa viagem de dois dias a bordo de um ônibus. Pode ser que essa crença tenha a mesma duração de um filme como As Pontes de Madison… Mas é o que importa: nesse universo, relações equilibradas fazem tanto sentido quanto cinzeiro em moto ou locadora de lingerie.
Também pode ser que esse sintoma fique mais evidente em lugares como Penedo, terra do já extinto Guardião. Imagino que, antes de fechar as portas daquela espelunca, a velha bruxa que mantinha o bar chegou ao alto de uma cachoeira, em algum lugar do parque nacional de Itatiaia, para despejar barris de retetéu – aquela bebida a base de vinho e “ervas aromáticas”. Dessa forma, tudo o que um vivente precisaria para enlouquecer de paixão platônica seria um copo d’água.
E eu só consigo pensar que a doce Carol, jovem de beleza brejeira, sorriso fácil e espontaneidade latente em sua pele, mergulha diariamente em uma piscina com retetéu diluido.
Quando a conheci, estranhei seu olhar distante e algumas palavas confusas. Ainda eram efeito de uma decisão esquisita, que começara numa discussão acalorada com a namorada. Pelo que entendi, ela vive uma dessas histórias impregnadas de farpas dentro e fora da cama. Mesmo para quem goste, paciência tem limite. Naquela noite, deixou a enlouquecida falando sozinha, dirigiu seu Fusca 80 até a casa de uma amiga e, numa sinapse retetélica, sentenciou:
– Bora lá no Ostra Azul, fofinha.
Esse “Ostra Azul” não tem relação alguma com aquele bar ficcional norte-americano da série Loucademia de Polícia, onde o Sargento Harris e seu capacho Proctor dão de cara com toda sorte de estereótipos gays, sendo obrigados a passar a noite dançando o tcha-tcha-tchá “El Bimbo”. Esse Ostra Azul é um prostíbulo na beira da estrada com todos os estereótipos de quinta categoria possíveis: ambiente feio, escuro e mal frequentado, cheiro de cigarro, luzes piscando e música alta, mulheres medianas cobrando até R$ 150 – mas só papai e mamãe, sem nenhum extra.
No meio das desajeitadas, uma morena minhom, roupa de princesinha, cabelos curtos, tatuagem no ombro. “Gatíssima com tudo muito no lugar” como lembrou Carol, iluminava os arredores com seu jeito de boneca. Quando os olhares delas se cruzaram, foi como se todas as cores ocultas nos copos sujos de cerveja brotassem de uma vez. Então aquela pequena criatura deslocada abriu um sorriso, silenciando a barulheira e dissipando a mistura de cheiros suados. Carol simplesmente não consegue descrever: disse apenas que nunca vai esquecer da expressão que mudou sua noite, sua vida.
Carol e a amiga sentaram, estavam absolutamente sem grana. “Tudo bem, eu te trago uma bebida”, sussurrou a mais desejada prostituta do Ostra Azul. Disse que se chamava Aline. Ainda sorrindo, pediu por um cigarro. Carol e a amiga estavam realmente sem nada. “Tudo bem, também vou te trazer alguns”, sentenciou, não sem estabelecer suas condições prévias:
– Mas eu não quero que você olhe para mulher nenhuma. Quero a noite toda só para mim.
Carol e a amiga ignoravam um detalhinho: lugares assim não são como castelos de contos infantis. Não existem guardas reais guardando a ponte, mas militares enigmáticos que fazem bico atuando como leões de chácara, prestando serviço para quem detém o poder do reino. No Ostra Azul, a cafetina ostentava a mais feia cara de mau possível para alguém de seu naipe. Dessas que não tiram o olho do rebanho, rebaixando-as como gado mesmo. Carol ouviu falar que as moças são humilhadas e multadas pela megera caso saiam da linha – desde ficar sem salto alto até propor programa fora da casa. “Nossa, como ela se parece com a Preta Gil”, brincou. Talvez seja mesmo a filha do ex-ministro trazida do mundo bizarro dos Superamigos.
Pois essa figura desempenhou bem seu papel de bruxa má. Aproximou-se de Carol e, gentilmente, convidou-a para sair.
– Quero ver essa moça trabalhar e você tá aqui empatando foda. Caia fora antes que eu acabe com a sua raça. E nunca mais bote os pés aqui. Se eu encontrar essa sua cara bochechuda outra vez, te mostro a minha navalha, sua safada!
Aquela expulsão discreta chamou atenção dos caminhoneiros próximos à porta. Uma puta nova, ou melhor, recém-chegada ao Ostra Azul, ficou horrorizada. Deve ter pensado algo como “onde eu vim amarrar meu burro”. Para sorte da Carol e de sua amiga (naquela altura pálida de susto), o Fusca 80 pegou de primeira. Caíram fora.
A partir daquela volta para casa, o mesmo incômodo bagunça a mente de Carol: uma louca lacuna sobre como seria bom viver tudo o que aquele encontro despertou. Pobre moça apaixonada, fisgada por aquilo que parece explodir qualquer desejo humano: desafios que se aproximam do impossível.
– Será que ela se lembra de mim? Não é possível que tenha mexido só comigo. Eu sinto que ela quer que eu fale. Queria que ela soubesse como eu estou, mas não posso entrar mais lá.
A não ser que… Plim!
– Pô, eu poderia entregar uma carta! Ai, se eu soubesse como escrever…
A quem eu quero enganar propagando minha descrença em histórias que tem tudo para dar errado? É possível que um escudo besta, forjado na desilusão, seja capaz de ignorar sentimentos desse tamanho?
– Carol, pegue um papel e uma caneta. Eu te ajudo.
Sem pensar ou respirar, tirou no meio da bagunça um caderno e uma Bic preta. Pensei nas ameaças da cafetina, naquele olhar perdido, em todas aquelas sensações… Podia escancarar um caminhão de coisas, mas achei mais prudente manter a calma e singeleza. Escrevi de uma vez só, não há espaço naquela paixão para uma “versão dois”. Ficou assim:
Oi, Aline! Antes de qualquer coisa, espero que você esteja bem. Sempre penso nisso, desde a primeira vez que nos vimos.
Nosso último encontro foi lindo e, ao mesmo tempo, confuso. Eu não entendi o que aconteceu e, ainda hoje, estou grilada. Não paro de criar histórias e pirar com a sua imagem.
Eu não sei como te dizer, nem sei se vamos nos encontrar de novo. Mas queria muito que isso rolasse. Minha vontade de te olhar nos olhos, falar tudo o que sinto e te ouvir muito... Isso só aumenta.
Tomara que esse bilhete chegue a você, das mãos de alguém que também quer ver tudo em paz. E depois, um dia, quem sabe, nossos sorrisos se encontrarem (sic) outra vez.
Um beijo da Carol
Além de algumas falhas de revisão, pensei comigo: “ficou tímida, discreta, nunca vou conseguir reproduzir o furacão que essa mulher tem no peito”. Para minha surpresa, ela amou o texto. “Parece até que eu mesmo estou falando”, comemorou. “Ela vai se sentir especial. Isso vai tocar no coração dela”.
Naquela noite, caminhando pelas ruas de Penedo com os amigos, Carol tinha surtos provocados pela carta dobrada guardada no bolso, reaberta a cada instante para mostrar a um amigo – também era para absorver cada palavra a ponto de decorá-las. “Não quero dinheiro, mas se eu tivesse, tiraria ela de lá se ela quisesse e viveria longe”. Só faltou Odair José sair do Restaurante do Fritz para cantarolar aquela famosa estrofe. Então eu me dei conta: sou mesmo um idiota que acredita no amor.
– Carol, e se a gente fosse até lá? Eu entrego essa carta para você.
Enquanto a apaixonada gritava “aaaiii, me leeeva naquele putêêêro agooora!!!”, fui impedido por todos antes mesmo da minha mente voltar ao estado racional de praxe. Afinal, convenhamos: fazer com que essa carta chegue nas mãos de uma profissional do sexo sem passar pelo radar que a persegue é uma missão digna de Tom Cruise. “E a essa hora da madrugada? O que você acha que ela está fazendo agora?”, questionou alguém bem mais sério.
Eu é que sei? Servindo café?
– Tá certo, não vai ser agora, mas um dia tem que ser. Eu só preciso entregar essa carta. Quero que ela saiba. Só assim vou conseguir ficar em paz. Depois disso, tanto faz.
Não sei o que se passou depois, mas a beleza do sentimento da Carol não tem data de validade. Pensando bem, nem sei se vale a pena saber da continuação: se nem os mais simples projetos sobrevivem ao imponderável, imagine este. Provavelmente o amor seja assim mesmo: frágil e precioso como uma flor nascida em qualquer canto inóspito. Talvez ele só exista assim, insano, sem normas ou receios, carregado de esperança. É justamente ela que, ao mesmo tempo, alimenta nossos sonhos e nos faz movimentar a vida que, rotineiramente, batizamos de “realidade”.
Como não dá para separar as coisas, podemos enlouquecer imerso em nosso excesso de romantismo, esperando a próxima rasteira que vai nos deixar sozinhos. Ou, sei lá, simplesmente abstrair, viver e não parar de amar do jeito que for.
Não se trata de sinapse retetélica, essa história é real! Fui testemunha e dou fé. Que chicovibe fabulosa!
Você realmente me assustou quitando chamou a Carol pra entregar a carta, Hahahaha. .. dois doidos! !!!
Sensacional a história!!!
Maravilhoso.
Adorei tudo,deu pra relembrar todos acontecimentos… Obrigada, Linda! Por me apresentar esse blog, para “reviver” a nossa historia. Bjbj!! Agradacimentos tbm a André Marmota!