Posso ser um adulto velho, bobo e quadrado. Mas acreditem: tenho orgulho em dizer que já participei de passeios inesquecíveis – apesar de achar que estou velho, bobo e quadrado demais para fazer coisas assim outra vez. Minha aventura inesquecível foi na Semana Santa de 1998, época em que ainda não comíamos (muita) carne vermelha na sexta-feira.
Minha amiga Rosângela conhecia uma cidade diferente, perdida no meio do nada. São José do Barreiro fica a aproximadamente 270 km de São Paulo, próximo da divisa do estado do Rio de Janeiro. Seu tamanho e formato lembram muito Tubiacanga, aquela cidadela da novela Fera Ferida (onde Raimundo Flamel atiçou a cobiça dos poderosos). Mas enfim. Esta é real, e está encostada no Parque Nacional da Serra da Bocaina – que abrange ainda as cidades de Formoso, Silveiras, Bananal, Ubatuba, Areias, Parati e Angra dos Reis.
Em 10 de abril de 1998, uma sexta-feira, fizemos uma caravana até esta simpática cidade: no Marmoturbo estavam eu, Ricardo Osiro – que esqueceu a carteira e embarcou sem um tostão furado – e meu irmão Daniel. Rosângela dirigia seu Gol branco ao lado da prima Thaís. E um casal de amigos, Edinho e Sônia, vinham logo atrás num fusca 1968 rebaixado.
Chegamos na confortável pousada da Dona Maria por volta das onze da manhã. Meia hora depois já conhecíamos toda a cidade – mal deu tempo de digerir o PF com tubaína do almoço. Não tínhamos tempo a perder: perto dali, em Formoso, estava o “cachoeirão”, uma das atrações do local. Saltos, duchas e banhos à tarde toda. Na volta ao QG, fomos surpreendidos pela procissão da Paixão de Cristo. Ainda com os cabelos molhados, acompanhamos a celebração num barzinho em frente à Igreja. Com cerveja (eu pedi Coca) e uma porção de salame.
Nessa altura do campeonato, já havíamos rebatizado a cidade para São José do Velho Barreiro. Na manhã de sábado, já sóbrios, os viajantes contrataram o serviço de uma caminhonete, entre as muitas que se oferecem para subir a serra da Bocaina. A idéia era encontrar alguma que cobrasse menos de R$ 150. Fechamos uma por R$ 100. No caminho, constatamos que até o pobre Marmoturbo seria capaz de fazer a trilha… Mas tudo bem: foi engraçado cantar e gritar em cima de uma D-20.
No parque, uma caminhada longa revela a Cachoeira de Sto. Izidro, a maior atração daquele pedaço da Bocaina. Visual deslumbrante, devidamente aproveitado por horas – a base de água mineral e amendoim japonês. Na saída, um susto: estava munido da boa e velha VHS-C quando escorreguei numa pedra. Fiquei desequilibrado, encharcado e com o pé ralado. Felizmente a câmera se salvou.
Mas a idiotice maior foi ter deixado câmera e máquina fotográfica na pensão da Dona Maria naquela noite. Assim, a parte mais inacreditável daquela maratona está registrada apenas na memória de quem esteve lá. E conheceu o Guardião da meia-noite.
A idéia foi do Robson, irmão da Rosângela, que apareceu em São José do Barreiro com um primo de Resende. Os dois nos convidaram para conhecer um lugar alternativo, diferente de tudo que existe no mundo. Topamos, claro. Por volta das oito da noite, atalhamos por uma estrada de terra até Penedo – arriscando a cantoria de Bohemia Rhapsody. Já na cidade, mais algumas voltas por caminhos que jamais saberia percorrer novamente. Finalmente, chegamos na bocada: um casebre de madeira, com um “puxadinho” que lembra um galpão interditado.
Ao botar os pés naquela espelunca, chegamos a conclusão de que era mesmo um bar. Tinha mesinhas, balcão e Doors como trilha sonora. Mas não era só. A iluminação precária dava tons sombrios aquele barraco de chão batido. Em todo lugar, inscrições dos visitantes: nomes talhados nas paredes, rabiscos de caneta e líquido corretivo no forro das mesas (datadas de oitenta e cacetada).
Num dos cantos havia uma espécie de “altar” simbólico. Na verdade, um ajuntamento de entulho. Objetos variados deixados pelos visitantes – garrafas pet, caixas de cigarro, uma cabeça de boneca… Mais uma forma de dizer “estive nessa encrenca”. No outro canto, perto do único banheiro, um sofá afundado. Em cima dele, um vira-lata. Outros bichos não-identificados circulavam ali perto. Definitivamente, era um lugar bastante rústico. Pra não dizer assustador.
Fomos apresentados à dona do estabelecimento. Uma velha hippie, que lembra a Madame Min. Toda faceira, veio explicando a origem do nome Guardião. “Estão vendo aquela janela?”, perguntou, apontando para um buraco na parede de madeira. “É a nossa janela ecológica. Dali é possível ver o Guardião com os seus próprios olhos”, revelou a tia bemloca, enquanto tirava não sei de onde um envelope pardo, contendo fotografias de uma árvore.
“Há muito tempo, essa que é a única árvore em todo o campo, tinha a forma da cabeça de um guardião medieval, vejam”, desenhando, com seus dedos enrugados, olhos e boca sobre a imagem. “Até hoje ela é preservada, e passa por sucessivas metamorfoses, sempre influenciado pela natureza”, dizia. Mudou para bruxo, mago, e naquele dia, a árvore tinha o formato do Bidu, o cachorro da Turma da Mônica.
E eu, que estava sóbrio, fui obrigado a admitir: avistava mesmo o Bidu através da tal janela ecológica. Que merda!
A doidona seguiu com as principais atrações do Guardião. Duas bebidas especiais da casa, preparadas pela própria bruxa, resumem o fascínio que atrai tanta gente àquele ponto inóspito do planeta. Uma chama-se “retetéu”, bebida gelada composta por vinho e ervas aromáticas (entenda o que quiser). A outra é o “pau de índio”, uma forte xaropada afrodisíaca. Você pode optar pela minidose, dose ou overdose. De brinde, a risada maquiavélica da vovó.
Eram quatro da manhã e a magia do Guardião já havia contaminado a maioria. Depois de uma dose de retetéu, Ricardo Osiro ficou absolutamente doidão. Foi encontrado algumas horas depois deitado em cima do Marmoturbo. Thaís e Rosângela mandaram algumas doses de pau de índio. A primeira vomitou em todos os lugares possíveis, inclusive dentro do Marmoturbo. Já a Rosângela estava bem – tanto que me arrastou pra algum canto pra explicar os efeitos da bebida. Seu irmão e o primo foi encontrado algum tempo depois, na beira do mesmo rio onde lavei o tapete do carro, na companhia de duas moças da região.
A manhã de domingo já batia forte em nossa cara quando dirigia, completamente sonado, pela via Dutra. Perto de Queluz, e completamente sem dinheiro, enxergo de relance uma placa: pedágio a 1km. “Esse não paga, vai em frente”, gritou alguém no amontoado banco de trás. Mais alguns metros e outra placa: automóveis R$ 3,30. Parei no acostamento e gritei: “preciso dessa grana, e agora”. Não me perguntem nem como o dinheiro apareceu, nem como chegamos à pensão: dormi praticamente o percurso todo.
Aqueles que conseguiram dormir por poucas horas naquela manhã levantaram-se dispostos a voltar ao “cachoeirão” do primeiro dia. Os que não puderam tiveram que ir do mesmo jeito. Depois de mais água gelada, sem dinheiro para comer – e sem caixas eletrônicos em São José do Barreiro, só nos restava arrumar as malas, pagamos a velha Maria com cheque voltamos para casa. Completamente alterados e com uma conclusão evidente: o universo é dividido em duas partes. O Guardião da meia-noite e o resto.
Devo dizer que, dependendo da semana, tudo que eu queria era fugir pra um lugar desses.
(Postado em 04/08/2005)
Leia também: O retorno ao Guardião da meia-noite (janeiro de 2008)
Cara, achei demais sua história! hehehe Não conhecia seu blog, voltarei mais vezes! heheheh Parabéns! 🙂
Nooooossa! Imagina só as histórias que ficaram DE FORA desse post!
E eu, uma vez trabalhando, passei uma enrascada uma vez no fim do mundo, um lugar lá no interior do Piauí (Sao Joao do Piauí, pleno sertao) onde o único restaurante da cidade fechava de meio-dia por hora de almoço…
Uh, Guardião! Uh, Guardião!
“Já a Rosângela estava bem – tanto que me arrastou pra algum canto pra explicar os efeitos da bebida.”
Mais detalhes, por favor 🙂
A Bocaina eh legal a beca! E estou aqui dando risadas da arvore-Bidu… 🙂
Só tenho uma coisa a dizer: muito bom!
Cara! Não acredito que você conhece o Guardião! Moro em Resende e, quando mudei para cá, fiquei aterrorizada com o lugar. Hahaha! Você esqueceu de mencionar os inúmeros gatos que ficam por cima das mesas. E a onda do pessoal daqui é encher a cara com as bebidas da velha e ir abraçar a árvore, todos juntos. Hilário! Mas, nunca fiz isso não… tenho medo…
Todo mundo tem direito a pelo menos uma experiência transcedental dessas na vida…
Comentado por Viva — Sábado, 6 de Agosto de 2005 às 23h00
André, aconteceu uma coisa surreal agora. Eu vi que o post foi publicado originalmente em 2005 mas não havia me dado conta que os comentários também eram daquela época. Quando cheguei ao último e vi meu nome levei um baita susto e pensei…uai, será que o Retetéu “bateu” só de ler? rs
Fiquei com vontade de conhecer esse lugar ;).
Repetindo o comentário do ano passado: “Uh, Guardião! Uh, Guardião!”
Segue um Slide Show da 1° Melhor Cidade do Mundo
http://www.youtube.com/watch?v=5070iP-P5W4
O Guardião ainda está funcionando… incrível,não?
achei irada sua istoria …eu li o livro guardião da meia noite …
e estou com vontade de conhecer esse lugar as presas …huahauahuahauha
vlw
by dudu
eu sei ki é antiga o post . mas como falava do guardiao nao podia deixar de falar .. ultimamente tenhu paceria com a Tia Mary dona do Guardiaoo .. i agora estamos fazendo shows de rock n roll la tbmm. o guardiao é ativo ate hoje e quem tiver interesse é so aparecer la !!
Guardião da Noite seu bar alternativo !
Hoje em dia o Guardião da Meia-Noite não funciona mais. Vai ver a árvore foi se metamorfoseando até sumir, e tiveram que fechar.