Reflexões pueris sobre a intolerância

Acompanho à distância os desdobramentos relacionados à publicação de charges ofensivas aos muçulmanos, e admito aqui a minha ignorância: talvez tivesse uma opinião mais clara se conhecesse um pouco mais a respeito do Islã. Ou mesmo as razões que levam o homem a fundamentar suas vidas a algum conceito inflexível, seja ele qual for, mas cuja forma predominante de afirmação esteja baseada na violência e na opressão a todos que não pensam da mesma forma.

Permitam-me, portanto, falar sobre o assunto de uma forma ingênua e infantil.

Sabem, as pessoas são diferentes. Não, não adianta passar a vida inteira procurando alguém parecido: não existe cabeça igual a sua. Tudo bem, tem pelo menos uma centena de anos que as pessoas não se importam mais com as outras. Passam boa parte do tempo trabalhando em busca de seus próprios objetivos, muitas vezes desconsiderando a presença de qualquer ser vivo ao seu lado.

Mas apesar de nos virarmos bem com esse individualismo (somos até capazes de ser felizes assim), não conseguimos viver sozinhos por muito tempo. A começar com a instituição familiar – que, cá pra nós, também anda enfraquecida. Mas enfim. Com o tempo, encontramos uma ou outra afinidade e formamos um grupinho de pessoas bacanas e felizes. Algumas vezes, por obra do destino, essas turmas são formadas aleatoriamente: sala de aula, condomínio, escritório, piscina coletiva… Coragem, homem: precisamos conviver com as pessoas.

Sempre foi assim, e a coisa fica ainda mais clara quando se trata de relações afetivas. Nesse caso, a afinidade e a aleatoriedade são acompanhadas por uma boa dose de sentimentos – que, de tão complexos, não deixam de ser afins e aleatórios ao mesmo tempo. Diante das nossas diferenças, que tipo de relação não deixa de ser um imenso desafio?

Agora imagine aquela criatura adorável, que até esses dias parecia trazer em suas mãos a tampa perfeita para aquela sua panela imunda. De repente, sem que você perceba, alguma coisa ridícula e sem o menor cabimento a deixa incomodada. Quando você tenta decifrar o que aconteceu para não repetir a mesma atitude, a criatura se incomoda ainda mais – afinal, você não precisa se preocupar com isso. Você acaba, naturalmente, adotando uma postura passiva diante da vida, que também a incomoda. Nisso, sua paciência vai parar na Lua – e você também se incomoda. Afinal de contas, não faz a menor idéia das razões que provocaram tanto incômodo.

Pior: continua tentando corrigir a rota, aumentando consideravelmente a carga de incomodações diárias, fazendo com que aquela criatura adorável suma do mapa misteriosamente. Aquilo que você sentia vira raiva, desilusão, cansaço, dores no corpo e na cabeça. Uma coisa horrível que poderia ter sido evitada com uma única resposta: afinal de contas, tem cabimento esquentar a cabeça com uma bobagem que pode ser resolvida simplesmente com boa vontade e uma dose de respeito à diferença de pensamentos?

Tudo bem, estou falando de uma historinha cuja abrangência muitas vezes não passa de um quartinho pouco iluminado, ou até três ou quatro longos e enfadonhos e-mails. Dores de cabeça que variam de acordo com nossa predisposição em tê-las, e muitas vezes encaradas como “coisas da vida”. Mas se alguém me dissesse que uma guerra alimentada por diferenças de pensamento começou de um jeito parecido, não duvidaria.

Senão, vejamos. Imagino um zemané qualquer. Pode estar perdido no meio do Oriente Médio há milhares de anos, ou parado agora mesmo em algum morro do Rio. Ele alimenta uma idéia pouco amistosa a respeito de um pobre coitado, a alguns metros de distância. Sem questionar, e até mesmo sem pensar muito no que está fazendo, pega uma pedrinha do chão e arremessa em direção ao sujeito. O atingido, tão ou mais zemané que o outro, esquece de respirar fundo, procura uma pedrinha maior e lança de volta. Afinal de contas, foi o zemané do lado de lá que começou.

Em poucos minutos, o ódio e a intolerância já estão embutidos nas almas dos dois cururus. Dedicam o resto do tempo a maquinar formas inteligentes e eficazes de jogar pedras cada vez maiores, de maneira rápida e precisa. Encontram formas diversas para financiar suas idéias malucas e substituem as pedras por artilharia sofisticada. Aproveitam a necessidade do homem viver em bando e convencem de que estão certos, conquistando cada vez mais espaço. E o apedrejamento, seja ele real, virtual ou verbal, continua.

Não importa se for uma batalha com pano de fundo político, religioso ou simplesmente uma briga boba no fim da noite com aquele alguém que você julga adorável. Muitas vezes, não é preciso acabar com tudo e provocar um desastre: basta encarar o desafio e buscar uma convivência harmoniosa. A intolerância vai dar lugar ao respeito facilmente, assim que percebermos o óbvio: estamos atirando pedras em nossas próprias cabeças.

(É, eu sei que não é tão simples assim. Mas eu avisei que seria ingênuo e infantil.)

André Marmota dialoga muito com o passado, cria futuros inverossímeis e, atrapalhado, deixa passar algumas sutilezas do presente. Quer saber mais?

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Comentários em blogs: ainda existem? (3)

  1. Matou a pau. É o que eu e a Sil estávamos discutindo hoje mesmo ao assistir um documentário do Michael Moore: Gente, desculpe lembrar, mas vivemos em SOCIEDADE! E isso exigo um minimo de esforço de TODOS os envolvidos. Ou entendemos isso de uma vez por todas, ou voltemos a subir em árvores e comer bananas.

  2. Andrezito, eu achei que tu ia falar de uma coisa e tu falou de outra. Comento as duas…

    No caso das charges: pra mim, foi mexer com quem estava (mais ou menos) quieto. Eu só não entendo por que tanta provocação, se todo mundo sabe que aquele povo é *muito* briguento. Não entra na minha cabeça. Falar que todo muçulmano tem uma bomba na cabeça? Ah, por favor…

    No outro caso: o dia em que vc conseguir resolver esse impasse, me ajuda? Se eu conseguir antes que vc, te ajudo também.

    Última coisa: teu texto não é infantil nem ingênuo. Há quem diga que a única forma de promover a paz nesse mundo é estimular a convivência entre crianças de comunidades diferentes (especificamente no caso de judeus e palestinos, mas eu acho que dá bem para generalizar). Quando a gente enxerga o outro como nosso semelhante, não dá coragem de matar. Mas eu quero ver quem vai ser o primeiro a ter essa idéia genial e ter coragem para botar em prática.

    Infelizmente é difícil viver com gente. Mas não dá pra fugir disso né?

    Beijos.

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