Quebra-cabeças

Dias atrás, em mais uma volta por aqueles corredores climatizados e acarpetados da Fnac Paulista, tive uma visão muito agradável. Uma pessoa incrível, daquelas que não entram na sua vida por acaso, estava na minha frente. Há muito tempo não nos víamos, e parecia estar na ali justamente por minha causa… Não era mesmo coincidência. Ela sorriu, se aproximou, me deu um abraço e uma caixa, embalada num belo papel de presente azul.

Não quis abrir ali, mesmo bastante surpreso e curioso. Convidei-a para um café no Franz – pretexto para ficar mais tempo ao seu lado e abrir o embrulho. Já em uma das mesas, enquanto pedíamos, descobri do que se tratava: era um quebra-cabeças, daqueles de três mil peças. Antes mesmo de agradecer o presente – e sua presença, ela diz:

– Tenho certeza de que lhe será útil. Tempos atrás, comecei a montar um quebra-cabeças semelhante, e enquanto permanecia diante desse desafio, refletia a respeito do que estava fazendo. Sabe, com uma única peça na mão, é extremamente difícil encontrar uma que se encaixe com ela, naquele bolo inteiro de duas mil novecentas e noventa e nove peças. Sem falar que umas são mais complexas que as outras: as mais comuns estão prontas para receberem pelo menos quatro tipos de peça. As das laterais, no entanto, podem encontrar apenas três. E as peças do canto, então? São apenas duas chances.

Não é uma tarefa das mais simples. Mas a coisa tende a ficar melhor à medida em que você percebe as características da peça que está na sua mão. Repare nas cores, no formato, na orientação… Conhecendo a bem, é mais fácil descobrir, no meio daquele bolo de duas mil novecentas e noventa e nove peças, ao menos uma que se encaixe. Isso leva tempo. No começo, você vai classificar algumas como perfeitas. Todo marinheiro de primeira viagem se engana… É preciso analisar muitas peças nesta caixa para ter experiência suficiente e observar certas arestas que lhe dão a rápida conclusão de incompatibilidade.

Eu mesmo encontrei dificuldades enquanto montava o meu quebra-cabeças. Quantas vezes acreditava ter encontrado uma de encaixe perfeito… A sensação é magnífica, mas sempre corremos o sério risco de nos frustrarmos. E não há decisão mais dolorosa do que jogar aquela peça, que outrora parecia tão boa, naquele imenso bolo de duas mil novecentas e noventa e nove… Parece até egoísmo, veja você, descartar peças assim. Mas faz parte do jogo: é preciso respirar fundo e seguir procurando. Além do que, a tal pecinha abandonada mantém o seu valor dentro do quebra-cabeças, e logo ela descobre outra no meio das outras e se ajeita na mesa.

Enfim, é mais fácil teorizar sobre as dificuldades e os possíveis caminhos para se encontrar uma peça no meio do bolo de duas mil novecentos e noventa e nove, do que perder tempo com uma nova peça inútil na mão, ou ficar lembrando das últimas que você tentou encaixar com a sua, mas novamente não conseguiu… E você se dá conta que a busca vai ter que continuar… – nesse instante, ela foi interrompida pelo garçom, que pediu licença para deixar as xícaras na mesa.

E eu continuava em silêncio, ouvindo atentamente suas palavras, imaginando onde ela queria chegar. Não precisei perguntar. Depois do primeiro gole de “moka”, ela prosseguiu:

– Tudo isso pra dizer, meu eterno amigo, que este presente nem se compara com outro quebra-cabeças. Um que tem cinco bilhões de peças: eu, você, o garçom, as pessoas que estão nesta loja e fora dela… Peças extremanente heterogêneas, repletas de arestas e imperfeições.

É claro que este é muito mais difícil. Mas não deixa de ser um desafio tão interessante quanto o que você tem agora em suas mãos, nesta caixa. E as esperanças, neste caso, ganham mais força se você lembrar que, enquanto você está procurando a sua peça, a sua peça está procurando você. Dependendo da sua fé, existe ainda a crença de que existe uma força maior, que independe de você, mas vai unir as duas peças, cedo ou tarde.

Hoje você está aqui, abandonado no meio bolo. Mas isso, como te disse, faz parte do jogo, e não quer dizer que você esteja fora dele. Pelo contrário: fica mais claro em sua mente o tipo de peça que lhe convém. Com o tempo, você vai descobrir as diferenças entre cada uma delas e vai gastar menos energia com peças duvidosas.

Também vai descartar muitas e ser descartado também, sempre tomando decisões incertas ou ouvindo desculpas maquiadas como certezas. Mas acredite que uma peça mal encaixada é pior do que uma peça sozinha, a procura da peça certa… – concluiu, levantando e pedindo desculpas pela saída às pressas – era o “adiantado da hora”, justificou. Deixou o dinheiro do café ao lado da caixa e saiu sorrindo, prometendo voltar quando terminar seu quebra-cabeças. E eu, uma peça…

(Postado em 11/03/2004)

André Marmota pode perder um grande amor, um amigo de longa data ou uma oportunidade de trabalho... Mas não perde a piada infame. Quer saber mais?

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Comentários em blogs: ainda existem? (7)

  1. André:

    Este post é um dos mais bonitos e reveladores que você escreveu e eu li. Fiquei muito emocionada, o que não é difícil. Difícil é ver alguém desnudar suas angústias tão abertamente na Internet.

    Espero que você encontre a pecinha que falta no meio destes 5.5 bilhões.

  2. André,

    a melhor parte de toda essa história é que, quando você encontra a peça certa, tudo o que aconteceu até ali passa a fazer sentido. E quando as peças se encontram é como se elas nunca tivessem sido separadas.

    Eu chamo isso de completude. E só consegui acreditar depois que me vi completa.

  3. Gosto muito desse texto e, claro, ele é um autêntico MMM.
    Mas de repente, ao lê-lo, acho que encontrei a solução pra que você abandone o calhau e produza mais textos novos: tente mentalizar que está na hora de você começar a reescrever a sua vida, a sua história. Recontá-la, afinal, acredito que ela mudou nesses quatro, cinco anos. A partir daí viram textos tão bonitos quanto esse, porém menos melancólicos, acho.

  4. Uma das melhores analogias que ja vi… só tenho a impressão, no auge dos meus vinte e poucos anos, que sou uma peça com defeito e que nenhuma das 2999 vai se encaixar. =/ rs

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