Então eu desligo meu computador, pego minhas coisinhas e vou para casa. Estranhamente, a Avenida Paulista está vazia. Caminho devagar o suficiente para as poucas nuvens se juntarem de uma única vez. Entre elas, no meio do céu, a imagem de uma mulher me surpreende.
– Você.
– ?
– É, é você mesmo. Pode parar aí.
– Mas que… Só faltava essa, dona. Sabe que horas são? E eu ainda tenho que chegar em casa… Tem mais o que fazer não, fica aí esvaziando a rua e aparecendo na frente de qualquer um?
– Eu tive que aparecer diante dos seus olhos, quem sabe assim você deixa de me maltratar…
– Como assim? Eu nunca vi você, e mesmo se conhecesse, não sou de judiar ninguém…
– Eu sou… A vida. A sua vida.
– Vida? Você? Ah, saquei. É igual aquela propaganda. Mas que… E eu nem bebo cerveja…
– Esqueça isso e me responda, com sinceridade: o que está fazendo comigo. Com a sua vida.
– Hmmm… Pergunta difícil. A bem da verdade, ultimamente eu ando pensando demais em você. E olha que eu nem imaginava que a minha vida fosse tão… hmmm… jeitosa, viu…
– Dispenso seus elogios baratos. E não é só ultimamente, não. Você sempre pensa demais em mim, para o bem ou para o mal.
– Hmmm… Não entendi.
– Você só pensa em mim, mas não faz nada. Pensar não adianta. Você pode não ligar para mim, mas acredite: um dia eu vou passar e nem vais perceber. Então será tarde demais.
– Puxa, dona vida, eu admito, especialmente nesse final de ano… Agora estou literalmente empurrando 2006 com a barriga, veja.
– Pare de segurar e agitar a sua barriga. Só aqueles seus amigos estúpidos acham graça disso. E você está me empurrando desde o início do ano.
– Nada disso, não seja injusta. Tive um começo de ano maravilhoso. Estava entusiasmado com aquela viagem, com a Copa do Mundo, com tudo. Então vieram aquelas pequenas decepções todas, ao mesmo tempo, e isso azedou tudo. Parece que você faz isso de propósito: um semestre legal, e depois um semestre meia boca.
– A culpa não é minha. Também não é das pessoas que estão ao seu redor.
– Pois então, as pessoas. Eu fico chateado com muitas delas, você deve saber. Esse ano eu me decepcionei com muita gente, pessoas que perdem muito tempo buscando valores materiais, mundanos… Puxa, o nosso maior valor é essencialmente humano, e é uma pena, mas as pessoas estão perdendo a noção. Essa gente sim está acabando com você.
– Bom, você está certo. Tem muitos que ainda acreditam que eu vou trazer dinheiro e reconhecimento falso… Isso não é da minha natureza.
– Pois eu não sei? Eu nunca me preocupei com isso. E sempre me cerco de amigos e pessoas que valorizam você, e não o dinheiro. Estou fazendo a minha parte, não estou?
– Ah, mas não está mesmo… Diga para mim, o que você fez da última vez que tentou valorizar alguém além das suas possibilidades?
– Hmmm… Você quer dizer aquela vez que eu disse “não me importo, estou feliz porque gosto de você”, é isso?
– Aiii… Tá vendo? Isso é horrível! É assim que você me machuca…
– Puxa vida, até você vai dizer que eu preciso me valorizar mais? Cacetada, viu…
– Mas essa é a verdade. Lembre-se de quando disse aquela barbaridade. Você estava diante de alguém que realmente queria muito ser feliz. Vou ser mais didática. Você é uma melancia, e ela até gosta de melancia. De repente, ela se dá conta que quer laranja. E isso é normal.
– É normal, claro, mas se eu sou uma melancia, devo ter caroço demais, estar verde, sei lá…
– Nãããão! Não procure isso em você. Não depende de você mudar para se adaptar a alguém. Cada um deve ser escolhido pelas pessoas certas. Sempre existe alguém.
– Existe, sim. Mas estão todas comprometidas ou morando muito longe daqui… Já te disse isso, não?
– Nossa, muito… Mas você também diz que precisa aproveitar a minha presença.
– Disse, sempre digo. Agora, com todo respeito, eu sou daqueles que consideram “aproveitar bem a vida” com muita moderação. Eu não me chateio em dizer que tive pouca experiência com você, porque bem ou mal, eu fiz o que achava certo. Também não tenho a menor pressa em ir atrás daquilo que não valha mesmo a pena investir, sabe? Tudo que eu quero é evitar aquelas constatações que já sabemos…
– Como você sabe disso? Você e a maioria dos meninos… São todos medrosos. Não se arriscam a viver intensamente. Preferem achar que sabem o final da história e desistem antes mesmo de começar.
– Eu sou medroso sim, admito.
– Medroso! Medroso! Perdendo chances! É um menino bobo!
– Ei, estou sendo zombado pela minha própria vida!!!
– Mê!!! Drô!!! Zôôôôôô!!!
– Tudo bem, eu sei. Estou tratando você como se fosse lixo, é tudo culpa minha. Eu não me esforço pra cumprir meus objetivos. Não vou malhar, não vou me mudar, não vou ser feliz… Eu sou acomodado. Satisfeita agora???
– Nossa… Você é a minha grande frustração. Quero te incentivar a fazer as coisas e não consigo… Sou completamente inútil pra você… Eu só não quero que aconteça nada de grave, puxa, é tao dificil entender isso? Por que você não se esforça? O que te prende???
– Minha vida é assim…
– Opa! Não me inclua nas suas desculpas!!!
– Tudo bem, vai. Eu sou assim. A vaca na estrada, que não sai nem com buzina. Ando muito relaxado, desmotivado, desinteressado, frustrado… Essas coisas.
– Puxa vida, achei que nunca fosse reconhecer isso…
– Mas eu enxergo, dona vida. A verdade é que eu me acomodo em vários momentos… O problema está na minha cabeça oca, que fica girando e voltando pra coisas que não preciso lembrar. Então eu me encosto em você, e eu sei o quanto isso é ruim. Mas eu prefiro sair da minha longa e interminável inércia aos poucos, começando pela minha saúde.
– Então se mexa! Você é inteligente, tem tanto potencial! Saia do marasmo, de verdade, e trate-me como eu realmente mereço!
– Não quero desmerercer sua motivação… Mas é que, do jeito que você diz, é provavel que eu seja castigado mais vezes se eu não fizer nada…
– Claro que vai. Eu sei que você tem esse enorme alarme interno, e você confia demais nele. Pode ser que funcione, mas muitas vezes é medo… Viva, rapaz! Eu passo depressa demais, e a felicidade não aparece muitas vezes não, hein?
Dito isso, as nuvens e as pessoas voltam ao seu lugar. E a vida segue seu caminho.
Só para não deixar passar: os comerciais da Kaiser com o mote “vida”, onde uma figura feminina dá um jeitinho de fazer os pobres mortais aproveitarem os bons momentos, são da O2 Filmes, a mesma de “Cidade de Deus” e do sensacional comercial da bala Halls, onde um sujeito como eu se aproxima de uma mocinha na balada e acaba mal – mas só na cabeça dele.
E a atriz que protagoniza as propagandas é a Dafne Michellepis. Ela também é bailarina e coreógrafa, tem 35 anos e é casada há quinze com o músico Kito Figueira, com quem tem dois filhos. Pois é, minha gente: até a vida está comprometida.
(Postado em 28/06/2006. De vez em quando, a vida volta e ainda diz exatamente as mesmas coisas. Como é difícil aprender, não?)
Nossa. Nem sei o que dizer.
Foi direto pros meus favoritos.
Curti o texto e a reflexão…
Tanto que até da vontade de fazer um post tb sobre esse mesmo tema…
HEHEHEHHE
Puxa, bateu nos meus calos! André, isso não se faz, sabia!? 😛
Pior que essa auto-crítica é a revisão epistmológica hermenêutica. Não sei o quê quer dizer mas acho feio pra caramba.
http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI2661910-EI4802,00.html
pra ver que vc não está maltratando tanto assim sua vida. “Pessoas que blogam tendem a ser mais felizes”
É… a vida é curta e deve ser bem aproveitada!
Caramba!!! Fez todo mundo parar para refletir um pouco!