Jubileu de prata do Buraco do Marmota

Meus primeiros anos de vida foram de uma intensidade ímpar: foram muitas as casas onde morei (incluindo Bauru, minha cidade natal), sempre acompanhando a expansão da telefonia em São Paulo com meu pai, que no final dos anos 70, era um dos montadores da Ericsson prestando serviços para a Telesp em todo o estado. Já no começo dos anos 80, o jovem casal gaúcho e seu filho rechonchudo reconheceram: era hora de parar com o desbravamento e fixar moradia na capital.

Mas era difícil sair do aluguel. Meu primeiro endereço na cidade de São Paulo foi – pasmem – na Rua Aurora, em 1979. Nossa renda familiar garantia o aluguel de um cubículo com quarto e sala, carpete com cores vivas e móveis cafonas. Não consigo acreditar quando minha mãe conta que brincava comigo em plena Praça Princesa Isabel, perto da estátua do Duque de Caxias e da antiga rodoviária…

A situação mudou no ano seguinte, quando finalmente conseguimos um apartamento maior na Aclimação. Quer dizer, “maior” é força de expressão. Aquele cantinho no edifício Caetés, número 130 da José Getúlio, tinha dois dormitórios acanhados, uma cozinha mais tímida ainda e um banheiro que fazia as vezes da área de serviço. Minhas primeiras boas lembranças da infância moram ali até hoje, e não duvido que meus pais guardam um carinho especial por aquele pedacinho.

Só que ainda sentíamos o impacto do aluguel. Para piorar, meu pai teimou em ver meu irmão mais novo nascer no Rio Grande do Sul, ao lado da família, o que consumiu preciosas economias. Quando voltou da querência, no final de 1982, percebeu que sua renda familiar ainda não era suficiente para comprar um imóvel na região central da cidade. Assim, ficou tentado a procurar as oportunidades da periferia.

Conheceu então um bairro promissor e com alto potencial de crescimento: o Itaim Paulista, distrito de São Miguel, no extremo leste da capital. A primeira incursão foi no casamento de um colega de empresa, o Severino. Minha mãe se assusta até hoje quando puxa da memória o trajeto e os perrengues daquela noite esquisita. A segunda viagem até aquela lonjura foi direto para a imobiliária.

Acostumado com apartamentos, tratou de fechar negócio no primeiro empreendimento que viu. Apartamentos pronto para morar a poucos metros da Marechal Tito, a estrada velha São Paulo Rio. Era indiscutivelmente barato: meu pai tratou de pagar alguns mil cruzeiros de entrada e dividir com a esposa, o filho rechonchudo e o recém nascido a expectativa pela mudança.

Dias depois, um problema. O corretor entrou em contato para dizer “não sei o quê não sei o quê seu otário não sei o quê não sei o quê da construtora não sei o quê não sei o quê miou o negócio”. Imagine o nervosismo após rasparmos a conta bancária para dar entrada em um lar doce lar inexistente. Mais algum tempo e a imobiliária apresentou uma alternativa, um pouquinho mais cara: um conjunto de 23 casas, em uma área mais alta e extremamente tranquila. Ruas fechadas e lazer garantido para a garotada.

Sem muita escolha, meu pai topou o negócio. Escolheu a casa número seis. Os corretores sacanas ainda ofereceram, pouco antes da mudança, a casa dois, que era maior e mais cara, porém compatível com o orçamento. Ainda irritado, meu pai ignorou totalmente a proposta. Mas a essa altura, era o máximo de arrependimento que poderia ter.

No fim de semana do carnaval de 1983, dia 12 de fevereiro, meu pai contratou uma kombi picape branca para levar todas as tralhas da Aclimação para o Itaim Paulista. Era pouca coisa, herança da era nômade: fogão Semer, geladeira Climax, TV Mistubishi da Copa de 82, aparelho de som National, alguns móveis de madeira que meu pai fez durante longas tardes… Coube tudo naquela caçambinha. Melhor assim, deve ter sido fácil descarregar…

A primeira lembrança que tenho da minha casa nova foi do lençol rosa florido no colchão estendido na sala, onde dormi com meus pais enquanto assistíamos a desfiles de escolas de samba na TV. Do meu primeiro dia de aula no pré-primário, do meu irmão correndo de andador no quintal aberto, das brincadeiras de pega-pega e queimada com as crianças da rua, dos sacos de cimento, blocos, latas de tinta e telhas Brasilit das inúmeras obras transformadoras, das fugas na delegacia atrás da rua e das viagens que me acostumei a fazer para conhecer a civilização, já se passaram 25 anos.

Nesses anos todos, já não consigo mais apontar quem mora em cada uma das 23 casas – apesar de lembrar com carinho de todas as primeiras famílias que inauguraram esse cantinho conosco. Já me acostumei a chamar a molecada dessa forma, mesmo com a maioria deles na faixa dos vinte, com seus carros, empregos e namoradas. Continuo levando ao menos uma hora para chegar a qualquer lugar do planeta, mas por mais que procure um cantinho mais próximo da minha vida social para viver, é impossível não se sentir abraçado em minha casa.

Agora é minha vez de abraçá-la: feliz aniversário, e obrigado pelos últimos 25 anos.

Comentários em blogs: ainda existem? (8)

  1. Poxa!
    Curti essa parte da sua história…
    Reconhecer e abraçar as raízes é muito importante!
    Quando mudei para Sampa morei na Duque de Caxias com a São João por uns 3 ou 4 anos…
    E sempre passo por lá com uma nostalgia e saudade.

  2. Puxa!

    Você conseguiu passar uma emoção ímpar com esse texto.
    Consegui imaginar cada morada, cada coisa… sentir a emoção!
    Quando a gente conquista uma coisa (ao invés de ganhar) a gente dá mais valor né?

  3. Nossa, que legal, vc mora há todo esse tempo na mesma tão acessível casa? Hehehe!

    Eu também lembro perfeitamente de todos os lugares que morei. E cheguei a revisitar alguns deles, há algum tempo. Tirei fotos que um dia virarão post. ^_^

    E agora, a piadinha óbvia:

    AH, você é de Beirute? Digo, Coxinha? Digo, BAURU?

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