Já viu o DVD de Armação Ilimitada?

Quem cresceu sob os ares dos anos 90 certamente não percebeu com tanta força as experimentações de linguagem na TV. Dá para contar nos dedos os sucessos dos últimos dez anos que realmente inovaram: a maioria deu certo por conta do reaproveitamento competente de boas idéias. Ao mesmo tempo, essa turma nem sequer imagina que, diferente da liberdade (que beira os limites da libertinagem) era impensável até o começo dos 80, quando o governo militar começou a abrandar a censura. Essa ruptura foi determinante para a aparição de tanta coisa divertida dentro e fora da telinha, diferente do que a moçada estava acostumada.

Talvez por isso os “trintões” de hoje estejam consumindo intensamente qualquer coisa que remeta ao colorido dos anos 80. Um dos ícones televisivos daquela época é Armação Ilimitada, considerado por diretores e aficcionados como “um marco na televisão brasileira”. Motivos para isso não faltam. A começar pela, mmmhhh, mudança de paradigma na estrutura familiar: dois surfistas que topavam qualquer aventura (pagando bem, evidentemente) dividiam espaço com a mesma namorada e uma criança prodígio, que fugiu de um circo. Um núcleo cercado por esportes radicais, preocupação ecológica, altas gatas e muito bom humor. Mas isso não é tudo.

Os LPs da trilha sonora, e Juba & Lula em 2004Juba e Lula! Hooooo!!! – Kadu Moliterno fez de tudo, até bateu na mulher, para tentar descolar sua imagem a do “cara que interpretava o Juba”. Não adianta. Ele e André di Biase, que antes de virar Lula emprestara sua familiaridade com o mar como o “Menino do Rio” Ricardo Valente, estão eternizados como heróis de uma geração. (Aliás, um parêntese: os filmes Menino do Rio e Garota Dourada inspiraram fortemente o seriado, todos sob a batuta de Antônio Calmon). Foram os dois que bolaram o argumento do programa: eles seriam sócios da Armação Ilimitada, empresa que se prestava a fazer qualquer bico que envolvesse sua caminhonete (o camburão), prancha de surfe, asa-delta, motocicletas, carros de corrida ou qualquer esporte radical. Pagamento preferencialmente em dólares.

E Zelda Scott, personagem que alçou Andréa Beltrão ao patamar dos grandes nomes da TV? Um mulher independente e bem resolvida, filha de exilados políticos, fã de Simone de Beauvoir e apaixonada pelos dois bons rapazes com espírito de aventura. Certamente muitas jornalistas de hoje decidiram seu futuro sonhando em ser Zelda Scott quando mais velhas. Assim como todo moleque repetia o bordão “ai meu saquinho”, sinal de respeito e admiração ao “secretário” da trupe, o órfão Bacana (Jonas Torres). Afinal, apesar da liberdade em sua criação, demonstrava ser o mais inteligente e coerente do grupo.

O quarteto compartilhava suas aventuras nonsense em busca de um relacionamento desencanado e soluções financeiras com Ronalda Cristina (a então “gordinha” Catarina Abdala), melhor amiga e confidente de Zel. As duas fugiam dos padrões de beleza de qualquer época, por isso tinham identificação imediata. Exceto por um detalhe inverossímil, como boa parte dos detalhes da Armação: Ronalda se tornou mãe solteira de uma filha alienígena (representada por uma boneca muito feia e um carrinho enfeitado com luzes intermitentes). Outro momento alto dos episódios era a presença do Chefe. Francisco Milani era o responsável pelo Correio do Crepúsculo (nome espetacular), e sempre que aparecia para discutir as pautas mais loucas para Zel, interpretava ao pé da letra algum chavão – coisas como “hoje ele está com a Macaca”, “o senhor está cheio de dedos”, “estamos num mar de lama”.

As histórias surreais, satirizando referências brasileiras ou seriados norte-americanos, eram narradas por uma DJ descolada, batizada Black Boy (Nara Gil, filha do ministro). Sua presença era compartilhada com elementos comuns em histórias em quadrinhos e videoclipes, mas completamente inovador na teledramaturgia brasileira: muita ação em cenas rapidamente entrecortadas, balões de diálogo, cenários expressionistas em estúdios coloridos… Tudo de maneira leve e descompromissada, sem apelação ou idiotices – bem diferente do que a juventude de hoje parece engolir.

DVD de Armação IlimitadaE o DVD? – “Como algo tão bom é apagado da memória televisiva sem mais nem menos? Quem topa uma campanha para a Rede Globo lançar a atração em DVD? Eu seria a primeira da fila”, disse aqui a Vivi, em 2003. Na verdade, quem pegou a primeira senha foi o Cris Dias, em 2001. Eu devo estar entre os dez primeiros: garanti minha cópia assim que descobri a pré-venda. Recebi na sexta, e já no domingo à noite havia devorado as quase sete horas de conteúdo encapsulado.

É uma pena que a Globo não tenha noção de como a indústria das séries costuma lançar seus produtos: por que não criar caixas alusivas a cada temporada, com todos os 40 episódios produzidos, ao invés de lançar apenas dois disquinhos reunindo apenas os dez programas considerados os melhores pelo diretor Guel Arraes? (Aliás, mais um parêntese: é impressionante como boa parte dos “marcos” recentes da TV nacional tem o dedo desse cara). Nada contra a escolha, que foi até bem feita. Mas o DVD não só ignora qualquer referência a datas (não há indicação sequer de quando as reportagens e entrevistas do Video Show, que compõe os extras), mas também perdeu a grande chance de impedir os torrents de quem quer ver mais.

Enfim. Armação Ilimitada teve oito episódios em seu primeiro ano, em 1985, apresentados mensalmente na Sexta Super. Destes, o DVD traz dois: O Prefeitável, com Luiz Fernando Guimarães no papel do candidato Perfeito Prefeito, e O Melhor de Todos, último daquele ano, em clima de Natal. Pois é, não tem o primeiro, que apresenta os personagens e conta como Juba e Lula encontram Zel e Bacana. Também não tem uma das paródias mais felizes daquele ano, quando Juba e Lula bancam os cowboys em um faroeste cenográfico.

Os outros oito programas do DVD são de 1986 e 1987, sem sombra de dúvidas a melhor fase da Armação, todas incluindo a abertura clássica e a música de Ari Mendes, aquela que começa com o riff de “Say What You Will”, da banda Fastway. Lamento que o produto não contempla nenhum episódio de 1988, quando o programa já vinha perdendo fôlego – não lembro dessa fase, onde Zelda larga o jornalismo e tenta outras atividades, e Bacana contracena com outros dois amigos estudantis, vividos pelos “ex-garotinhos” Caio Junqueira e Paloma Duarte. É desse ano um dos mais lembrados dos fãs, quando Juba e Lula reencontram a guitarra de Herbert Viana, dos Paralamas. Pena que não era um dos preferidos de Guel Arraes.

Tem mais um que estaria na minha lista de dez melhores, mas não está no DVD: aquele onde Ronalda Cristina anuncia o fim do mundo, mensagem que deveria ser reprisada pelo menos uma vez a cada seis meses. Dos quatro episódios dos 14 exibidos em 1986, destaque para Jararaca, O Cabra, que homenageia o povo nordestino e traz o “eterno cangaceiro” Maurício do Vale; Uma Dupla do Peru, onde Evandro Mesquita e Luiz Fernando Guimarães (que batiam ponto na série) decidem concorrer com Juba e Lula e lançam sua “Arma$$ão”; O Canto da Sereia, onde Bianca Byington interpreta o personagem-título e Cláudia Raia aparece na festa de Guimba e Bacana; e A Bruxa, onde Patrícia Travassos (uma das autoras) transforma Juba em Tumba (é o único episódio entre os muitos produzidos com alguma conotação sobrenatural).

Nenhuma das paródias de 1986 estão no DVD: Mignun (referência ao Magnum de Tom Selleck), Jambo (Rambo, precisava explicar?) e Poliana Jones. A única do gênero já é de 1987, ano que rendeu 12 programas, e de onde pinçaram os quatro que completam o DVD: A Dama de Couro, onde Debora Bloch mata primeiro e pergunta depois como Kate Machoney (sátira à Dama de Ouro, exibida pela Globo naquele ano). Os demais são: Jeca Tatu Cotia Não, onde os caipiras Evandro Mesquita e Fernanda Abreu (da Blitz) se envolvem numa trama complicada por causa do petróleo encontrado em suas terras; O Pai do Bacana, onde o playboy Baby Júnior (Daniel Filho, que criou o nome da série e também se envolveu até o pescoço) “reencontra” o filho perdido; e o melhor de todos os dez selecionados: O Menino que Virou Lama, onde o líder de uma seita estranha tenta impedir a chegada do sucessor de Buda.

Apenas boas recordações – Não há dúvida: qualquer um que tenha visto Armação Ilimitada naquela época sente todas as suas memórias invadirem a mente diante de um DVD como esse, espécie de “máquina do tempo”. Mas não sei como se comportaria um adolescente de hoje ao assistir o programa pela primeira vez. Talvez ache divertido, interessante… Provavelmente até goste um pouco. Mas a comparação com qualquer coisa que faça mais sentido (como Malhação) seria inevitável.

Por essas e outras é preciso ter muito cuidado ao tentar recriar todas aquelas sensações que deram certo naquele período de nossa história para os dias de hoje, absurdamente diferente. Não há como não desconfiar, por exemplo, dos planos de Juba e Lula, atuais “cinquentões”, de ressuscitar a Armação num longa-metragem. Fico imaginando se a Zelda (a Marilda da Grande Família) ou o Bacana, hoje com trinta anos, toparia uma presepada dessas. Mais: quem seria o Chefe, já que o insubstituível Milani já faleceu?

Vai ter muita gente torcendo o nariz, implorando para que não mexam nas felizes recordações do passado e não repitam uma bobagem como a de 1989, quando a dupla comandava um game-show vagabundo. Agora, caso o DVD faça algum sucesso e Armação Ilimitada volte à boca do povo, não seria nada surpreendente reencontrá-los no cinema: se Rocky Balboa e John McClane reapareceram mais experientes, porém com o pique de sempre, por que não Juba e Lula?

Atualizado: Uma semana depois, o Portal G1 escreveu aquilo que você já viu aqui. Mas o melhor é a entrevista com Jonas Torres, respondendo a dúvida que citei no parágrafo acima: “Eu não sou o Bacana, eu fiz o Bacana”. Acabou, né?

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Comentários em blogs: ainda existem? (11)

  1. Marmota! amei…morri de saudades… como vc lembra disso…vc é muito novo!!!!!
    adorei recordar…a zel da era minha ídola!!!
    e eu, apaixonada pelo kadu!

    vc esta coberto de razão quanto a conclusão do seu post.
    apenas,vc se lembra tb do tv pirata? eu amava…..
    saudades de vc… Bom dia e boa semana1
    ps: hoje tem tina no meu cantinho….

  2. Caaaaara, o Milani era incrível nesse papel do chefe, putz! Aliás, sempre fui fã desse cara. Vou procurar agora no YouTube a entrevista dele no Jô, foi impagável, hehehe!

    A tiazona que era mãe da alienígena chata também era muito engraçada (não sabia o nome dela)! Só não curtia mesmo a tal DJ Black Boy, que aliás era girl! :S

    E não teve uma época que tentaram mudar o ator que fazia o Bacana porque ele tava muito crescido?

    Muito bom o post! Resgates de infância são sempre tiros certeiros. 😀

    Abraço!

  3. Cara, não perdia um episódio da série. Dava muita risada e o episódio da semana era assunto obrigatório na escola. Só para enriquecer o texto, nada me tira da cabeça que a DJ Black Boy foi inspirada na DJ do filme Warriors. É muito semelhante. Droga, mais um gasto nesse mês. Já não bastava os bonequinhos dos Transformers.

  4. “aquele [episódio] onde Ronalda Cristina anuncia o fim do mundo”

    Esse é aquele em que eles se enclausuram num abrigo nuclear?

    “Mas não sei como se comportaria um adolescente de hoje ao assistir o programa pela primeira vez.”

    Acho que dá pra ter uma noção. Experimente exibir Guerra nas Estrelas (Star Wars episódios IV~VI) e/ou dar um NES (o “Nintendinho”) na mão de um tween contemporâneo.

    “se Rocky Balboa e John McClane reapareceram mais experientes, porém com o pique de sempre, por que não Juba e Lula?”

    Hmm… Tem também “CHiPs” (o filme[1]).

    [1] http://www.imdb.com/title/tt0162898/

  5. Deixa só eu falar pra você: tenho 20 anos, estou atualmente morando em Portugal e vi pela primeira vez a Armação no GNT, e eu simplesmente adoro essa série, tenha uma fixação mesmo. Apesar da imagem não ser moderna e tudo mais, a qualidade do texto, dos atores e da direção são fantásticas, não têm um programa que chegue aos pés da Armação Ilimitada. Hoje em dia na tv agente só vê porcaria, tenho vergonha do que se faz na minha geração. E na Globo só tem idiota, em vez de aposatar mais no Guel Arraes, no Nelson Motta, na Patrícia Travassos e até no próprio Calmon não… O Antonio Calmon até tem feito umas novelas, mas nada que se compare a armação. Mesmo assim é melhor do qualquer outro autor, alguns que até se acham a elite da elite mas que escrevem a mesma novela tem muitos anos… Um filme da Armação sim! Se der errado paciência, ficaremos com os episódios dos anos 80 ora sempre na memória! Viva a Armação Ilimitada!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

  6. Voltei no tempo por um segundo e faria qualquer coisa pra reviver todos os momentos em que assistia a armação ilimitada na antiga globo. O passado não volta, mas as vezes quero uma máquina do tempo.

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