Em defesa eterna do “piropo”

Não sou o que se pode chamar de especialista no sexo oposto. Pelo contrário, acumulo experiências que mantém no primário incompleto o meu nível de escolaridade na matéria. Ainda assim, acredito que na maioria dos casos eu não deixo passar a chance de sorrir para uma moça, independente de seu estado civil, e diante de uma brecha, dirigir-lhe algumas palavras doces, sinceras e descompromissadas. Isso não faz bem apenas para quem ouve, mas para quem as diz também.

Infelizmente esse tipo de postura nem sempre é bem compreendida. Ainda mais nos dias de hoje, onde o ritmo frenético do dia-a-dia esbarra em qualquer tipo de relação social. Não há mais tempo sequer para um bate-papo: os casais “ficam” sem sequer perguntar o nome. Quando qualquer cururu chega sorrindo balbuciando qualquer coisinha meiga, as moças já colam rótulos em sua testa, como “careta”, “boboca” e todos aqueles sinônimos impronunciáveis aqui.

Você pode chamar como quiser: galanteio, cantada, flerte… Em Portugal, há uma palavra de origem espanhola que indica uma abordagem bem sucedida nesse contexto: piropo. Miguel Esteves Cardoso, um dos meus escritores portugueses favoritos (um dia ainda vou ler O Amor é Fodido, já concordando com ele por antecipação) fez uma defesa espetacular do “piropo” em seu livro A Causa das Coisas, coletânea de crônicas do jornalista nos jornais Expresso e Independente, todas nos anos 80.

Temos aqui uns vinte anos e um oceano inteiro de distância, mas é impressionante como o texto é atual.

A vida de qualquer rapaz deve ser ler, escrever e correr atrás das raparigas. Esta última parte é muito importante. Hoje em dia, porém, os rapazes já não correm atrás das raparigas – andam com elas. A diferença entre “correr atrás” e “andar com” é, sobretudo, uma diferença de energia. Correr é galopar, esforçar, persistir, e é alegria, entusiasmo, vitalidade. Andar é arrastar, passo de caracol, pachorrice, sonolência. O amor não pode ser somente uma partida de golfe, em que dois jarretas caminham devagar em torno de alguns buraquinhos. Tem de ser, pelo menos, os 400 metros barreiras.

Os dois sintomas mais preocupantes desta nova tendência para a letargia erótica são, por um lado, a decadência acelerada do piropo, do galanteio, e por outro, o culto solene e obstinado da sinceridade. Ambos contribuíram para facilitar a sedução, tornando a própria sedução numa coisa muito menos sedutora, já que não há maior afrodisíaco que a dificuldade.

Os rapazes de hoje já não perguntam às raparigas se os anjos desceram à terra, ou que bem fizeram a Deus para lhes dar uns olhos tão bonitos. Dizem laconicamente, com o ar indiferente que marca o “cool” da contemporaneidade “Vamos aí?”. Ou simplesmente “bora aí?”. Nos últimos tempos, tanto em Lisboa como na linha de Cascais, esta economia de expressão atingiu até o cúmulo de se cingir a um breve e local “Bute?”. “Bute” significa qualquer coisa como “Acho-te muito bonita e desejável e adoraria poder levar-te imediatamente para um local distante e deserto onde eu pudesse totalmente desfazer-te em sorvete de framboesas”. Mas, como os rapazes só dizem “Bute?”, são as pobres raparigas que têm de fazer o esforço todo de interpretação e enriquecimento semântico. São assim obrigadas a perguntar às amigas “Ó Teresinha, o que é que achas que ele queria dizer com aquele bute?”. E chegam à desgraçada condição de analisar as intenções do rapaz mediante uma série de considerações pouco líricas – foi um “Bute” terno ou ríspido, sincero ou mentiroso, terá sido apaixonado ou desapaixonado?

Isto não pode ser, até porque há uma tradição a manter. Imagina-se alguma rapariga a dizer “Ai, Lena… Quando ele disse “Bute” subiu-me o coração à boca!”. A verdade é que o coração é um órgão bastante precioso e só se dá ao trabalho de subir à boca quando se lhe dão excelentes motivos para isso. De uma maneira geral, todas as palavras que não se imaginam num soneto de Camões são impróprias. O amor pode ser um fogo que arde sem se ver, mas não basta tomar o facto por dado e dizer simplesmente “Bute” – é preciso dizer que arde sem se ver. Mesmo que não arda, mesmo que se veja.

A própria palavra piropo (do latim “pyropo”) tem óbvias conotações incendiárias. Alguns alquimistas definiam esta pedra como sendo uma mistura de “três partes de lata e uma de ouro, que fica da cor do fogo”. A lata é extremamente importante – sem ela não se pode construir um bom piropo. Não só basta a parte de ouro (o sentimento, ou desejo) – faltam mesmo os demais 75 por cento. E o piropo faz falta, mesmo que seja só, nos preparos de amor, o “pequeno grão de arroz” de que fala a cantiga…

Dentre todos os piropos, o mais lindo (e mais português) é o piropo que se dirige, de passagem, a uma rapariga bonita. Não é o piropo que procura obter algo em troca – não é o piropo interesseiro do engate – é o piropo per si, e desinteressado. Diz-se quando ela passa e deixa-se que ela passe sem responder. O piropo desinteressado é o supra-sumo desta arte e deve entender-se como o pagamento poético de uma dívida.

Ela é bonita – você gostou de a ver. Em troca, inventa uma coisa bonita para lhe dizer, sem esperar outra recompensa senão a enorme recompensa de saber que ela o ouviu. Qualquer rapariga gosta de (e merece) ouvir um piropo destes. Em contrapartida, nenhuma rapariga tem paciência para as alternativas cada vez mais habituais; o basbaque calado que fica a ver, o engatatão incómodo que marcha atrás da rapariga como um detective pouco particular, o ordinário que se mete, até o banana tímido e ensimesmado que nem sequer se dá ao trabalho de olhar.

É preciso acabar com a escandinavização do erotismo português. Não é só o piropo que morre. São as cartas de amor, as flores de um anônimo admirador, as boas frases de apresentação e toda a panóplia de doces artifícios que deveriam estar sempre presentes na preocupação de um bom rapaz português. A escandinavização (exercício físico, comidas saudáveis, windsurf e sexo sem culpa e sem graça) tem, como fator mais perigoso, o culto à sinceridade. É triste, mas é verdade. Hoje em dia quase ninguém mente! Os rapazes dizem “não és muito bonita, mas até te gramo”, e as raparigas respondem “preferia o Richard Gere, mas já que aqui estás…”.

Isto não pode ser. Para qualquer rapaz, a rapariga com quem está (ou quer estar) não pode ser senão a mais bonita do mundo inteiro. A honestidade é a morte do encantamento. Bem utilizada, a mentira criativa chega ao ponto de convencer o próprio mentidor. Uma mentirazinha que vá um nadinha contra a razão (“era capaz de morrer por ti”, por exemplo) é sempre uma contribuição espetacular a favor do “live aid” do coração. A verdade é nua e crua, e nisto parece-se bastante com um bife de peru. As coisas nuas têm de ser misteriosa e lindamente vestidas, e as cruas têm sempre de ser cozinhadas. Ninguém gosta de bife de peru, mas uma vez panadinho comm pão ralado, e enfeitado com agriões e rodelas de limão, e servido num prato branco e limpo com um sorriso impecável… Come-se já.
Há uma medida eficaz contra a banalização e simplificação das relações amorosas, mais portuguesa que escandinava, e mais agradável que andar a butes. É namorar. Todas as mulheres – sejam raparigas ou mulheres, esposas de há 20 anos, conhecidas ou desconhecidas, mais ou menos bonitas, não importa – todas elas têm de ser convincentemente, absolutamente e permanentemente namoradas. Se não, ao vale a pena – nem para elas nem para eles.

Na rua ou em casa, no trabalho ou no liceu, não deixe que nenhuma rapariga bonita passe por si em vão. Com correcção e jeito, lance-lhe um piropo sentido e desinteressado, e verá como sabe bem. Pense que nunca mais irá vê-la outra vez (o que é quase sempre verdade) e aproveite aquela única oportunidade. Ou, sendo esposa ou namorada, sua ou de outra pessoa, também não fica mal. O amor, pode ter a certeza, tem de estar no ar tanto como no lar.

A propósito, você ficou ainda mais linda depois que cortou o cabelo.

Comentários em blogs: ainda existem? (14)

  1. Muuuuuuuuuuito legal o texto! Depois de uma noite mal dormida, de uma gripe e de chegar a conclusão que o mundo está acabado, esse texto com certeza levantou a moral. Nada mais verdadeiro, todas nós adoramos um piropo!

  2. Uma graça o texto!
    Cheguei a imaginar o autor na porta de um bar no Porto lançando “piropos” a esmo… E você, Marmota, no escadão da Gazeta a fazer o mesmo! rsrs
    O melhor? A sua frase final, que se encaixa em todo e qualquer caso e não deixa de ser uma gentileza bonitinha…
    Beijo!

  3. Olá, Marmota. Prazer. Conheço o blog há um tempo (por indicação do Fábio Matos), sou leitora assídua, mas nunca deixei um comentário. Esse post é sensacional! Adorei o texto e, assim como você (e acho que como muitas outras mulheres), também não sou uma expecialista no sexo oposto. Mas acho que aí é que está a graça, né? Sempre tem de existir um ar de mistério por aí…

    Abraços = )

  4. Que linda maneira de expressar que precisamos de mais gentileza nas relações. Um viva ao piropo desinteressado!
    Basta com esse negócio de sinceridade a todo custo, putz… isso é um saco!

  5. gostei do seu blog. adoro poesia e pretendo escrever um livro. so nao sei quando vou publicar.
    sempre que tenho tenmpo leio essses poemas. ha algum tempo queria deixar algum comentario mas nao sabia o que escrever, o importante nao é escrever bonito mas sim escrever bjs. adorei de verdade!!!

  6. Boas, desde ja tens a minha veneração, o texto acima, é algo que deveria ser transmitido a todos, não só pela riqueza que ele contem, mas também peala informação que ele revela…

    é verdade, no tempo que estamos ja não há aquela paixão de fazer um piropo que comtenham umas palavras magicas, como turnura ou simpatia… actualmente so se vê piropos à “trolha”, até podem ter grassa, mas para uma pessoa que não nos conhece é quase como “tratar-la mal”- entre amigos(as) de vezes em quando porque não utilizar um ou outro de longe a longe, mas por favor, nós temos inteligencia, ternura e imaginação para fazer um piropo que vale a pena sair da nossa boca e entra subtilmente na cabeça de uma mulher, até porque mandar um piropo como: “Ó musa dás-me tusa”, ou “Ó “morcona”, comia-te o sufixo”, qualquer um manda, mas para quê? para dizer eu é que sou bom… nao me parece! pensem em algo que elas gostariam de ouvir e que lhes fica-se na cabeça por um bocado, algo que nos faça macar diferentes unicos, e que nos torne melhor, algo como: “Que encanto dá ao teu rosto a meiguice desse teu olhar…” querem ser mais ousado, tenham alguma originalidade não digam: ” Ó filha, queres ir ao céu? Sobe os andaimes que o resto do caminho é por minha conta…” mas tentem esta versão:”Os meus beijos são a minha arma, o meu corpo é o meu escudo. Anda comigo para a cama. Quero-te declarar-te guerra.” Certamente irmos sentir-nos melhores com nós proprios, é claro que ninguem pode dizer que elas irão adorar, como em cima estava escrito e volto a frisar “Dentre todos os piropos, o mais lindo (e mais português) é o piropo que se dirige, de passagem, a uma rapariga bonita. Não é o piropo que procura obter algo em troca – não é o piropo interesseiro do engate – é o piropo per si, e desinteressado. Diz-se quando ela passa e deixa-se que ela passe sem responder. O piropo desinteressado é o supra-sumo desta arte e deve entender-se como o pagamento poético de uma dívida.”

    P.S.: Esta é minha maneira de pensar, não estou a espera de agradar gregos e troianos (embora que tente sempre o meu melhor para ser bem sucedido) ^_^

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