Diários sem Motocicleta

Por Marcos VP, do blog Pirão Sem Dono

1978, Mossoró-RN. Minha primeira viagem de carro. Tão inesquecível que eu guardo o gosto do primeiro lanche de estrada que eu comi na vida – um prosaico queijo-quente que eu fui roendo lentamente por quilômetros a fio de sertão, rumo a Natal.

1979 – São Luiz-MA. Hóspedes do hotel Quatro Rodas da praia do Calhau, o mais luxuoso do país naquela época, eu e meu irmão passávamos o dia na piscina, mergulhando de uma ponte que nela havia. Meu pai comeu tanta feijoada que passou mal. Certo dia, fomos a uma birosca comer A caldeirada de camarão do Germano, lenda viva que, por ter muitos inimigos, morreu baleado sem dividir com ninguém a receita do maravilhoso ensopado de frutos do mar que fez sua fama. Também nessa viagem eu quase fiquei rosa de tanto tomar Geneve, refrigerante que, anos depois viria a ser conhecido como Guaraná Jesus.

1979 – Piripiri-PI. No hotel fazenda mais xexelento e quente da galáxia, come-se com uma das mãos. A outra tem que estar livre para espantar as moscas. Com minha xereta p&b tirei fotos do lugar, que além dos insetos, tinha uma velha vaca leiteira e um pobre maracajá preso em uma minúscula gaiola. Foi o único hotel de minha vida de onde eu quis ir embora.

1982 – São Paulo-SP. Tempo de vacas gordas. Saímos viajando de Fortaleza em Janeiro e passamos por Rio, São Paulo, Foz do Iguaçu, Brasília e Manaus, até voltar ao Ceará. Em Sampa, eu joguei dez cents de dólar nas fontes da praça da Sé pedindo para parar de chover. Depois disso, por quase dez anos, eu tive o poder de controlar o tempo.

1982 – Foz do Iguaçú-PR. Morre Elis Regina. Compramos um monte de muamba no Paraguai, inclusive revólveres de brinquedo com balas de festim. Sim, crianças brincavam com isso antigamente. Eu brinquei e não me tornei um assassino maldito.

1983 – Flórida-USA. Primeira viagem para o exterior. São 12 horas de viagem de avião, duas conexões e duas escalas. Depois da terceira perna, meu pai me proíbe de continuar comendo a comida do avião. Mas ele e meu irmão dormem e eu como a minha comida e a deles. Na chegada a Miami, há duas limousines esperando o grupo, uma só para meu pai e os filhos. Meu pai, menino pobre do Ceará, engasga e passa o traslado todo absolutamente mudo.

1983 – Orlando-USA. Primeira vez numa montanha russa, o louco do meu irmão me chama para os únicos assentos livres – os primeiros. O coração quase sai pela boca. Depois, percebo como fui macho de andar naquilo. Cheio de coragem, resolvo, do alto dos meus doze anos, azarar a menina mais bonita do grupo, de 15. Coleciono 800 tocos. No segundo dia da Disney, meu pai olha para a gente logo na chegada e diz: – me encontrem aqui mesmo às 5 da tarde. E manda a gente sumir da frente dele. Éramos dois moleques, de 12 e 9 anos. Olhamos um para o outro e zunimos, para passar o dia revirando o parque de cabeça para baixo. No final, conhecemos dezenas de atrações que mais ninguém no grupo viu. No hotel, meu irmão toma um antialérgico para bronquite e dorme. Ficamos trancados do lado de fora do apartamento.

1986 – Teresópolis-RJ. Num pequeno hotel fazenda, ando a cavalo pela primeira vez. A porra do pangaré dispara, desce um barranco, invade a plantação de alfaces de uma camponesa, quase atropela uma criança e eu ainda consigo levar o cavalo barranco acima. Sou o Rei. Dois anos mais tarde, em Fortaleza, outro cavalo me derrubaria e eu passaria mais de 15 anos sem conseguir montar em um eqüino.

1989 – Missão Velha-CE. Três meses de férias no Ceará. Arrumo três namoradas. Para ficar com uma delas, eu viajo 800km de ônibus até o sertão do Cariri. Ela fica de doce por três dias. Desisto e tomo o pior porre de cachaça da minha vida. Aí, ela resolve ficar comigo. Volto a Fortaleza para o carnaval mas não pego mais ninguém.

1990 – Fortaleza-CE. Volta para o Rio, de ônibus. Peço dois calmantes para uma tia médica para dormir na viagem. Ela me dá dois diazepan mas me orienta a tomar um a cada dia da viagem. Tomo o primeiro mas ele demora a fazer efeito e eu resolvo tomar o segundo de uma vez. Passo 48 horas feito um zumbi.

1993 – Friburgo-RJ. Festa em São Pedro da Serra, região de Lumiar. Na volta, um caminhão tomba e fecha a estrada principal. Entramos, às duas da madrugada em uma estrada secundária. Perdidos, fomos sair de lá só umas quatro.

1995 – Porto Seguro-BA. Lua de mel. Minha esposa à época nunca tinha andado de avião e pelo menos essa parte da viagem foi boa. Mas chove muito. Perdemos um passeio de barco três vezes. Passo mal. Um gambá entra na minha mala. Esqueço meu aniversário. O agente de turismo esquece de buscar a gente para o traslado de volta e temos que nos virar de kombi, de Arraial D’Ajuda até o aeroporto. É, não foi uma boa viagem.

1996 – Flórida-USA. Viagem para passar um mês nos Estados Unidos. Voamos pelo Lloyd Aéreo Boliviano. 18 horas de viagem, com duas escalas e uma conexão. Na perna entre Santa Cruz de La Sierra e Manaus descubro que uma velhinha que está sentada atrás de mim está com um chulé matador, um pé que parece um queijo gorgonzola. São algumas das horas mais longas da minha vida. Chegando em Miami, eu me vejo com a pele absolutamente ressecada, por mais de 36 horas passadas integralmente sob ar-condicionado, dos aviões, aeroportos, do carro e do apartamento de meu ex-cunhado. Sou obrigado a sair para cometer a bichisse de comprar um hidratante. Durante a viagem, escapamos por pouco de um furacão, que passou ao largo da costa.

1996 – Santa Cruz de La Sierra-BOL. Foram 26 horas de viagem de Miami ao Rio, com uma conexão de 10h em Santa Cruz, que passamos em um hotel. Na escala em La Paz, percebemos o efeito que faz a altitude. Eu estava louco para ver os Andes do alto, mas estava tudo nublado. Vi apenas uma nesga de neve passando. No embarque de volta ao Brasil, revista pessoal para homens e mulheres. Há uma troca de aeronave e na nova, nossos assentos ficam dentro da cozinha (galley). Ao chegar em São Paulo descobrimos que não temos vacina contra febre amarela e dá a maior merda. Perdemos a conexão das 20h para o Rio. O vôo seguinte é às 2h da manhã. Desembarcamos com 120kg de bagagem. E ainda tínhamos que ir de ônibus para Friburgo.

1998 – Ilha Grande-RJ. Era meu aniversário. Estávamos seguindo para a Ilha, na barca das 10h. O mar está muito mexido e eu começo a enjoar. A viagem é longa e eu agüento firme. Ao chegar na Vila do Abraão, quase beijo o chão firme. Esperando-me no fim do atracadouro, estão meus pais e meus irmãos, indóceis. Tinham acabado de contratar um passeio de saveiro e o barco só estava esperando que chegássemos para poder seguir.

1999 – Fortaleza-CE. Carnaval na praia de Morro Branco. Mais de sessenta pessoas estão hospedadas na casa da minha avó. Durante o carnaval, todos os casais, todos, sem execeção, se desentendem. Duas meninas perdidas aparecem durante a noite pedindo ajuda e só não são devidamente abatidas porque os poucos solteiros do bando são uns loseres. O toca fita do carro de um tio meu é roubado junto com algumas garrafas de red label. O ladrão aparece para tentar revender o roubo e meu tio negocia com ele só o whisky.

1999 – Belo Horizonte-MG. Encontro Nacional de simuleteiros. Ganho um sorteio e faço uma vôo apavorâmico em um ultra-leve que, seis meses mais tarde, viria a matar o próprio dono. Na volta ao Rio, consigo viajar na cabine do ERJ da Rio-Sul. O Pouso no Santos-Dumont, num Rio nublado, em completo grayscale, é uma das imagens que jamais desgrudará de minha retina.

2001 – Mataraízes-ES. Viajando de carro para Guarapari, percebo que a luz da bateria do meu velho possante está piscando. Isso me preocupa e me distrai e nem percebo que estou quase sem gasolina. Consigo chegar a um posto e abastecer. Ao tentar sair, a bateria do carro está completamente arriada. As escovas do alternador estavam gastas. Por sorte havia uma elétrica no mesmo posto.

2001 – Jericoacoara-CE. Eu e uma amiga estávamos na Praia das Fontes, 100km a leste de Fortaleza, para passar apenas o dia, pois ela tinha compromisso no dia seguinte. De repente, l[a para o meio dia, um telefonema cancela o compromisso e ela pergunta: aê, topa ir para Jeri agora? Eu topo. Jeri fica a 600 km de onde estávamos. Fomos para lá sem saber o caminho, sem reserva em pousada e apenas com duas toalhas de banho compradas no caminho, na SOCORRO Modas de Caucaia. Erramos o caminho várias vezes, pedimos informação a bêbados, quase paramos para dormir ao relento, em bancos de praça. Só às 2 da manhã, a bordo de um Pálio macho pacarai, batizado depois de “tatuí”, não porque era um tatu com injeção eletrônica, mas porque venceu a última etapa da aventura – quilômetros de areia fofa da praia – com garbor e elegância, chegamos em Jeri, para, então, tentarmos arrumar pousada. Conseguimos e foi uma das viagens mais fantásticas que já fiz.

2002 – Araras-RJ. Eu e a Thania estamos esperando, debaixo de chuva, começar um show do Alceu Valença. Estoicamente, passamos por todo um show de Gabriel, o Pensador. Antes de Alceu entrar, desistimos e voltamos para a pousada. A lenha da lareira, úmida, não acende de jeito nenhum. Nossas tentativas, contudo, defumaram todo o quarto. Dormimos como dois baconzitos.

2003 – Fortaleza-CE. Show de humor na capital cearense. Aprendo duas importantes lições: nunca coma peixe em self-service depois do meio dia. E se você é gordinho, nunca vista laranja e se sente na frente do palco em um show de humor. As conseqüências podem ser trágicas. Com efeito, foram.

2003 – Visconde de Mauá-RJ. Era para ser apenas um sábado, mas havia um show legal de noite e resolvemos ficar. Alugamos um quarto na pousada mais fuleira onde jamais estivemos. Tivemos de comprar roupas de frio e escovas de dente. Durante o show, enchemos a cara de fondue de queijo e vinho. Três meses depois, a Thania aparece grávida.

2003 – Jericoacoara-CE. Dois anos depois da lendária primeira viagem com o tatuí, repetimos a dose, eu, minha amiga e a Thania. A viagem foi mais planejada, mas ainda assim, inesquecível. Nunca me esquecerei da Thania, grávida, tendo um chilique diante de uma placa de Bohemia e dizendo: EU QUERO, EU PRECISO!!!

2005 – Friburgo-RJ. Ganho de presente duas semanas em um SPA, para emagrecer. Depois de duas semanas, parodiando Tim Maia, tudo o que eu perdi foram 15 dias. Também acabei perdendo o gostp pelos poucos vegetais que me apeteciam. No final, valeu pelas terapias místicas, holísticas e alternativas de que participei… limpeza de aura com cristais, massagem shirodhara, capoeira na água, mapa astral, arvorismo com tiroleza e o mais doido de tudo: o temascal, um ritual xamânico que coloca um monte de gente junto com um monte de pedregulhos incandescentes, água fervendo e ervas esquisitas dentro de uma barraca escura e enlameada. Sai-se de lá com a alma absolutamente disposta, disposta a nunca mais repetir tal insânia.

2007 – Brasília-RJ. Depois de seis meses, despeço-me da capital. A greve de controladores de vôo impede que a Thania me encontre para revezar os 1200km de estrada entre a capital federal e o Rio, e eu sou obrigado a cumprí-los sozinho, o que faço em 14 horas, num ritmo conhecido como “pau dentro”. O único revés foi um pneu furado.

2007 – Esse mês tem Mauá de novo. E ano que vem, se tudo der certo, Buenos Aires. Queremos encher o cu de carne, assistir jogo do Boca Juniores na Bombonera, evitar o túmulo de Evita, ir a Montevidéo, fuçar o teatro Colón, fazer compras de roupas de frio – eu quero uma camisa do Vélez – tomar vinho, comer alfajores, e assim como os hermanos portenhos, fingir que estamos flanando por alguma grande capital européia. A viagem promete.

Enquanto Marmota continua a comemorar cinco anos de blog ao lado do MarcosVP, a série Colônia de Férias apresenta textos gentilmente preparados por seus amigos, torcendo para que todo mundo tenha ao menos uma experiência destas por ano.

Comentários em blogs: ainda existem? (6)

  1. Adorei!1li todas, uma a uma!
    cara, mais tu é sortudo pra dedeú….
    acabra a baateria no eio do nada, e encontrar pousada depois de viajar 600 km ó com uma toalha…
    rsss
    Já vi que essa ideia do André deu certo!!!!

    abraço proce.

  2. Marcos, teu post me fez lembrar da viagem de carro que fiz com meus pais e meu irmão pelo Nordeste… Conheço Mossoró por conta dela. Saímos de Belém e fomos até Salvador (só não fomos a Aracaju). Meu irmão tinha 11 meses e começou a andar durante essa viagem… E vibramos demais quando passamos pela montanha em formato de galinha que aparece no filme O Cangaceiro Trapalhão! 🙂 E comemos muuuuuuitos sanduíches de queijo pela estrada!
    Adorei suas recordações que sacudiram as minhas. 😉

  3. Eu também li tudo e adorei cada viagem. Lembrei de algumas que fiz, de alguns apuros, de outras sortes, de desencantos e bocas abertas de tanta admiração. Viajar é sempre tudo de bom! Ótimo, Marcos, que você se lembre de tudo assim, com essa memória saudosa…

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