Desvendando o Internauta-padrão, parte 3: a estrela

Em praticamente todos os períodos da história, o poder da escrita separava as castas superiores e inferiores da sociedade – a Idade Média nos traz o maior exemplo, onde havia um abismo entre os escribas do clero e os reles vassalos. O alcance deste poderoso instrumento aumentou por volta de 1450, quando um alemão de sobrenome Gutemberg inventou a imprensa e os primeiros tipos móveis. O instrumento amplificou como nunca a força da palavra escrita, culminando com o surgimento de um novo poder: a mídia (ou “os media”).

Historicamente, o poder da comunicação sempre foi privilégio de poucos. A Internet, no entanto, abre uma possibilidade impensável até bem pouco tempo: a democratização da informação. Óbvio que os grandes conglomerados sabem disso e já estão de olho não apenas nesse mundo novo, mas principalmente em outras grandes empresas, interessadas nos negócios do ramo (é o caso das “teles”). Apesar disso, é inegável que este momento de transição, onde podemos consumir, produzir, transformar qualquer tipo de conteúdo, representa uma quebra de valores muito forte. O modelo de comunicação de massa, onde um transmitia para muitos, vem sendo substituído por outro, onde qualquer um tem acesso ao mesmo microfone, compartilhando idéias.

É claro que, mesmo na época de Gutemberg, o exercício da escita dependia do ato de pensar. Mesmo atributo necessário para compreender as mudanças de paradigma provocadas por este cenário. Infelizmente, o Internauta-padrão não gosta de usar a massa cinzenta. Assim, ainda que ele ultrapasse a difícil barreira do “saber escrever”, provavelmente ainda se sinta na Idade Média, como se tivesse com todo o poder em suas mãos.

Quem é o Internauta-padrão estrela?

Estrela 1 era um moleque como outro qualquer, até ganhar de presente um computador com acesso à Internet. Foi o primeiro da rua a ter em mãos essa poderosa ferramenta, e fez questão de alardear o feito a todos os seus amigos: “eu tenho, você não tem!”. Suas primeiras providências foram instalar o MSN e abrir uma conta no Orkut, para que pudesse caçar amigos e influenciar outras pessoas que, assim como ele, estavam naquele lugar transado e cheio de possibilidades.

Ignorava a TV, os livros, as brincadeiras da rua… Tudo que Estrela 1 queria, quando voltava da escola, era entrar na Internet. Levou poucos dias para descobrir em uma comunidade a deliciosa ferramenta blog: criou um novo em minutos, sintetizando no título aquilo que ele julgava ser capaz de fazer diante daquela máquina espetacular: TODAS AS NOTÍCIAS DO MUNDO. Em menos de uma semana, aquele humilde moleque da rua sentia-se como se fosse o Rupert Murdoch.

Tudo ia maravilhosamente bem em seu mundo encantado, povoado por alguns amigos. Até que ele decidiu reproduzir um texto encontrado em outro blog – sem querer, ele até fez a coisa direito: viu que o conteúdo era Creative Commons e citou a fonte.

O que ele não imaginava é que o blog em questão era mantido por Estrela 2, jornalista há mais de vinte anos e editor do maior periódico de sua cidadezinha no interior do Brasil. Os dois passaram longos dias em uma intensa disputa de egos, disponível publicamente em seus blogs: enquanto o primeiro bradava “o espaço é meu, e faço o que bem entender”, o segundo lamentava “justo eu, uma pessoa de reputação ilibada, preciso conviver com essa estirpe”. Os dois tinham total razão, e continuaram com ela até o fim.

Características do Internauta-padrão estrela

– Basicamente: ao entrar na rede, sente-se diferente, único, exclusivo. O que lhe deixa tomado por um estranho e inexplicável poder.

– Coleciona amigos no Orkut, exige testemunhais elogiosos, corações e afins. E acha estranho (para não dizer “revoltante”) se alguém ignora ou recusa seu pedido.

– Cria um blog para dizer ao mundo que odeia conviver com gente diferente dele. Ou para citar feitos heróicos de sua vida espetacular.

– Ainda no blog, invariavelmente, começa seus textos com expressões do tipo “hoje eu estou inspirado”, “estou me tornando especialista nesse tema”, “vejam que coisa maravilhosa eu criei”, “acho que eu mereço um prêmio agora…”.

– Em casos mais extremos, define seu blog como um “estupendo veículo de comunicação de massa”.

– Não responde e-mails. Ou, quando o faz, usa algum mecanismo público, como seu próprio blog ou uma lista de discussão, para mostrar que está com a razão.

– Ainda que cometa um erro ou esteja falando uma bobagem, e mesmo que peça desculpas discretamente, jamais vai descer do pedestal: a culpa nunca será dele.

Eu sou um Internauta-padrão estrela!!! E agora???

Antes de mais nada, é importante deixar duas coisas bastante claras.

A primeira: pode ser que você seja um jornalista. Daqueles que está na área há muito tempo e, impregnado pelo poder natural que a mídia oferece, sinta-se mesmo com algum poder além dos demais. Normal. Afinal de contas, é um “especialista em comunicação”, por isso sempre tem razão ao defender uma postura ética, condenando seus interlocutores medíocres. Nesse caso, lamento dizer, mas não há saída: certamente você continuará assim até o fim dos seus dias. Viva a sua vida e seja feliz.

A segunda: pode ser que você seja como a Dra. Claudia Gomes Lyra Siqueira. Ela é realmente muito boa no que faz, e não se incomoda em dizer isso a ninguém. Você também pode ser alguém carregado de conhecimentos imprescindíveis e pontos de vista inquietantes, ter a plena consciência disso e demonstrar tal capacidade sem esforço algum. Nesses casos, mesmo que o cidadão seja o maior antipático da paróquia (e obviamente não estou falando da Claudia!), eu tiro o chapéu.

Tanto os jornalistas quanto os fora-de-série, assim que desembarcam no mundo virtual, estão propensas a esbarrar com pessoas como eu, você e (infelizmente) os Internautas-padrão. Não seria preciso lembrar o quanto é ridículo comparar o nível de conhecimento entre usuários distintos, mas como o texto é direcionado para estrelas, é fundamental lembrar: como estamos no mesmo ambiente, o diferencial não está no que sabemos, mas em como nos relacionamos.

Nesse caso, nada impede que você permaneça brilhante, auto-suficiente, supremo. Buscar por fama pura e simples é um direito seu. Agora, em um ambiente onde a colaboração e a interligação é a base (o nome “rede” não existe à toa), um ponto com elos frágeis ou inexistentes não significa muito. Mesmo nomes de grande reputação, como Dan Gillmor (um dos precursores do jornalismo cidadão), adota o seguinte lema: “Eu até sei algumas coisas, mas o público sabe mais do que eu. E isso é maravilhoso, pois eu posso contar com a ajuda de todos para saber cada vez mais”. Assim todos os pontos da rede se fortalecem naturalmente, sem deixar espaço para quem não está nem aí com as pessoas.

Alguém pode dizer que as palavras “humildade” e “responsabilidade” resumem tudo que está escrito acima. Verdade, e elas deveriam ser úteis mesmo fora da rede. No entanto, convém lembrar que “Internauta-padrão” é um estado de espírito: de repente, qualquer um de nós esquece de pensar e, num estalo, a vontade de aparecer é maior. Acontece, qualquer um comete erros. Que eles sejam momentâneos, portanto.

Na parte 4: o justiceiro.

Antes de virar a página, gostaria de agradecer ao Rafael, à Tina, ao André Souza, à Ceila Santos, ao Fugita-san, ao Norberto e ao Cardoso. Todos receberam de braços abertos o conceito do Internauta-padrão, e contribuiram de alguma forma para que eu retomasse a série (apesar do atraso).

Mas também preciso agradecer a outras duas personalidades, por suas declarações sensacionais. A começar com Ziraldo. “Os quatro primeiros anos são formativos, não informativos. Informação tá na Internet, tá no Google, tá por aí. Se você não sabe ler você não sabe procurar. Agora se eu não souber ler estou perdido. Internet por exemplo é o antro do débil mental. Só tem idiota na Internet. É uma coisa – o usuário da Internet é um babaca, entendeu? Aquelas mensagens, aquelas piadas que chegam, é tudo de uma indigência… eles escrevem mal, eles têm um mau-gosto terrível, agora, a Internet é fundamental porque toda a informação TODA está lá. Agora, se você não sabe ler, não tem curiosidade, de que adiante aquele presente dos deuses? Não aprenderam a respeitar a palavra, que é o que nos identifica”.

Por fim, meus cumprimeiros ao historiador britânico Andrew Keen. Ele pode ter uma visão extremamente conservadora ao defender o Estado e as velhas mídias, mas não nego a existência de um caos de informações inúteis e inverídicas (e mais: como alguém pode ser contra os blogs mantendo um?). “Tenho blog para vender o livro e construir minha marca. A Internet é uma grande plataforma de marketing, mas é preciso ter algo por trás. Meu livro não defende que as pessoas não tenham blogs, apenas que não finjam que são substitutos da mídia tradicional ou representantes de fontes de informação confiáveis sobre o mundo. Me preocupa que as pessoas se apóiem em um conceito como o que ele criou para roubar idéias alheias, me inquieta essa permissividade geral em relação aos direitos autorais, em especial entre os jovens”.

Respeito o ponto de vista deles. Ao mesmo tempo, eu não me considero um idiota, um analfabeto, um irresponsável… Para mim, está claro: eles não estão se referindo a mim, mas ao Internauta-padrão. Estou errado?

Não deixe de ver ainda…
Parte 1: o Internauta-padrão crente
Parte 2: o Internauta-padrão plagiador

André Marmota acredita em um futuro com blogs atualizados, livros impressos, videolocadoras, amores sinceros, entre outros anacronismos. Quer saber mais?

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Comentários em blogs: ainda existem? (16)

  1. Puxa, eu sou uma devagar mesmo… só hoje que tomei conhecimento dessa sua série de posts fenomenais sobre o internauta-padrão. Como vc classificaria esse comportamento tartaruga? hahahahaha

    Brincadeiras à parte, estou me deliciando com suas palavras. Parabéns pela fluidez.

    Beijos!

  2. Ráaaaaaaaaa, então a Claudia é citada como um bom exemplo de ESTRELA! Hahaha! Quero muito ver o que ela vai comentar a respeito! XD Pois eu concordo com vc, Marmota, ela é mesmo. ^_^

    Agora, o que eu achei REVOLTANTE no seu texto, completamente inaceitável, é vc não agradecer a MIM! Isso eu não posso conceber, de maneira nenhuma. Hehehehe!

    Abraço!

  3. Putz, Marmota! GENIAL!

    Muito boa a reflexão, mas… não nos acharmos internautas-padrão, já não nos torna um pouco internautas-padrão estrelas?

    hehehe To brincando… Mas você tem razão, é completamente real esse tipo de internauta.

    Vou procurar ler os demais textos da série, que só agora descobri!

    E obrigado por indicar o meu texto… Fico feliz que você tenha gostado!

    Abraço, cara!

  4. existe leitora de internauta padrão estrela? ou de qualquer outro tipo?
    Achei otimo o post, e vou ler os anteriores.
    vc sabe, tenho um blog, que muitas vezes me faz pagar cada mico, que não sei como tem gente que se acha só por ter espaço nesse universo, que na minha opinião é um grande palco, onde cada um atua ou no anonimato, ou de peito aberto, porque se acha protegido pela tela.
    vou ler seus post. e parar de falar .
    um abraço

  5. O bom do internauta-padrão é que ele é um estado de espírito temporário. Se você não é, pode se tornar um em certos momentos. Se você o é na maioria das vezes pode ir deixando de sê-lo conforme vai adquirindo experiência na rede.

    abraço

  6. Ainda não tive tempo de ler o post da forma que merece, mas fiquei feliz com o retorno da série!

    Ah sim, valeu pelo link! O Google Analytics e o Technorati já agradeceram!
    eheuhauhae

  7. André, isso poderia virar material didático nas escolas, a molecada já vai aprendendo desde cedo, sabe…
    Parabéns pelo texto, em mais uma sensacional sequência by Marmota que já virou leitura obrigatória!

    Abraço!

  8. “Clap, clap, clap”

    Sonoras palmas pro retorno da série. Aconselhável para leitores, indispensável para futuros e atuais blogueiros.

    Entender o internauta-padrão é ultra essencial para quem busca ser um “caça-paraquedistas de elite”.

    =)

  9. Tentando entender a internet[…]li hoje no Marmota números impressionantes sobre o crescimento da internet no Brasil. Somos cerca de 50 milhões de internautas, espalhados em diversas classes sociais — com assustadora parcela de 38% na classe C. Seja você blogueiro, blogueiro-l…

  10. É por textos como esse que eu fico com pena o internauta-padrão que é incapaz de ler textos longos.

    Essa série está se tornando uma das melhores que já li, em qualquer blog, incluindo os meus 😉

  11. Marmota, isso merece um livro…pra ficar registrado pra sempre…Mas o melhor da série é que cada dia melhora mais. Está perfeita… vou tentar usar o tal trackback que ainda não assimilei…Parabéns! Adorei

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