Aconteceu no sábado de Carnaval

09h58 – Sem trânsito, ruas desertas, vagas abundantes para estacionar. Assim é a cidade de São Paulo num feriado prolongado. Para alguém como eu, que detesta Carnaval, foi uma dádiva sair de casa para trabalhar. Sorridente, encostei o carro a alguns metros da labuta e segui caminhando: em dois minutos, precisava bater meu cartão.

11h37 – Oitocentos quilômetros dali, um amigo meu acordou. Ele mora em São Paulo, mas estava em Laguna, litoral sul catarinense. Aproveitou a folga para conhecer um dos mais comentados carnavais do país: dizem que a festa promovida na cidade é espetacular. Como chegou no dia anterior à tarde, após 15 horas num ônibus convencional, dormiu até mais tarde. Estava com dois companheiros, que também despertaram preguiçosamente ao final daquela manhã.

13h24 – Uma companheira de serviço saiu de casa e foi até o ponto de ônibus. Estava de folga, mas tinha pressa: apenas algumas horas para atravessar a capital paulista e chegar ao barracão da Nenê de Vila Matilde. Ela nunca pensou em desfilar em uma escola de samba, mas resolveu aceitar o convite de uma amiga e experimentar a brincadeira. “Todos deviam fazer isso ao menos uma vez na vida”, pensou.

15h02 – Durante meu almoço – um sanduíche de calabresa no “morte lenta”, um trailer da Alameda Campinas – ouço o celular. Era o Baiano, amigo de longa data. Estava triste em São Paulo, longe de Salvador, sentindo muita falta daquela energia porreta que só o axé do circuito Barra-Ondina poderia lhe oferecer. Já que estava por perto, pensou em assistir a um jogo de futebol. Disse a ele que os grandes times da cidade jogariam no interior, e antes de desligar, disse a ele qual seria a única opção.

16h19 – Perdida no meio de centenas de desfilantes, que se espremiam ao redor do barracão da Nenê, minha amiga finalmente encontrou a autora do convite. Na mão direita, a terceira lata de cerveja do dia. Na esquerda, o dedo indicador mostrava o caminho para as fantasias. “Mas rápido, os ônibus pro Sambódromo já estão saindo”, recomendou.

16h44 – Em Laguna, os três viajantes pediam uma porção de camarão num quiosque da praia do Mar Grosso. Um deles reclamou: não tem outra coisa para comer nesse lugar? A bronca foi, na verdade, de brincadeira: bronzeados, todos estavam maravilhados com a cidade.

17h38 – Baiano me ligou outra vez. Tinha ido assistir ao jogo que havia sugerido: Nacional e Juventus, clássico paulistano da segunda divisão. Ao lado dele, outros trezentos cidadãos corajosos estavam no estádio Nicolau Alayon, na Barra Funda, e companharam a partida, válida pela Série A-2. Placar final: zero a zero.

17h51 – A noite surgiu calmamente, amplificando todas as expectativas diante da tradicional festa profana brasileira. Em São Vicente, um conhecido meu conversava com seu primo rondoniense, em férias na sua casa. Contava histórias passadas sobre bailes memoráveis no Ilha Porchat, quando foi interrompido pela campainha. Era sua noiva.

18h09 – Dezenas de ônibus foram cedidos pela prefeitura para transportar os foliões ao Anhembi. Os que deixaram a Vila Matilde, com alguns minutos de atraso, fizeram um caminho diferente: atravessou uma favela, ainda na zona leste paulistana. Os nativos, prováveis torcedores do Corinthians, não tiveram dúvidas: apedrejaram os coletivos sem piedade. “Fechem os vidros”, pediu o motorista. “Não dá”, gritou minha amiga, que deixou a armação da fantasia para fora da janela. Todos permaneceram abaixados até os gritos e pancadas cessarem.

19h27 – Era o terceiro telefonema de Baiano: queria saber qual a minha programação após o serviço. Comentei que tinha vontade de ir a uma festa à fantasia, num bar de Pinheiros. Convite de um grande amigo DJ, seria ótimo prestigiá-lo. O soteropolitano fez a contra-proposta: tinha ouvido falar em uma tal “tréxi oitenta”. Falei que era preciso disposição para encarar o lugar e que dificilmente a teria naquela noite. “Então prefiro sair com você a sair sozinho”, decidiu. Marquei dez horas na frente do seu hotel.

20h49 – “Já estou terminando, segurem a fome”, diz a noiva do meu colega, disposta a preparar o jantar e permanecer ao lado dos dois até a madrugada chegar. Os rapazes se entreolham, com cara de “nossa noite já era”.

21h52 – Já tinha encerrado meu expediente quando meu comunicador instantâneo piscou. Sorri: ela vinha de uma das poucas pessoas especiais da minha vida. Ela tinha um problema: estava em casa e não conseguia comprar pela Internet a passagem para a cidade dos pais. Também não tinha certeza de que, ao chegar na rodoviária, encontraria um caixa eletrônico aberto. Tinha poucos reais na carteira. Nenhuma folha de cheque. Teria que ficar sozinha, a contragosto. Disse a ela que seria capaz de passar a noite no computador conversando – ignorando o compromisso marcado com Baiano. Fiz o que pude para amenizar sua solidão, até que ela criou coragem: decidiu arriscar e ir à rodoviária. Antes de desconectar, lhe dei um último recado: “essa é a pessoa incrível que conheço, e não a que estava deprimida há pouco”.

22h53 – Com ajuda da amiga (ainda sóbria), finalmente fantasia e foliã eram uma coisa só. Mas deu trabalho: foi preciso amarrar uma coisa ali, colar outra aqui… Tudo bem, naquela altura, não havia motivo algum para se arrepender das oito ou dez notas de cinquenta investidas ali.

23h08 – Encostei o carro ao lado do Formule 1 da Consolação, cumprimentei Baiano e pedi desculpas pelo pequeno atraso. Para compensar, disse que lhe pagaria um bauru no Ponto Chic antes de ir a festinha. Animado, ele mostra um abadá e uma peruca: “não tinha fantasia, mas essa deve servir”, conta. Respondi a ele: talvez não precise…

23h34 – Ainda animados após o dia todo circulando pelas praias, os três viajantes acompanharam um trio elétrico no animado carnaval de rua de Laguna, um dos maiores do sul do país: segundo estimativas, eram 200 mil pessoas a mais na cidade. Muitos homens vestidos de mulher, outros atrás delas à força. Impressionado, meu amigo viu suas chances de paquera reduzidas: “se for pra agarrar sem perguntar, prefiro ficar na minha”, sentenciou.

00h12 – Demorou, mas a garoa típica do carnaval paulistano havia chegado. Justamente quando parei o carro em uma das travessas da Cardeal Arcoverde. Chegamos ao Dinamite, lugar que é mesmo um estouro. Naquele momento me dei conta de que, em momento algum, disse ao Baiano que não curtia muito essa coisa de “esquindô”: a reação dele ao entrar numa casa de corredores estreitos, pouca luz e som alternativo foi instantânea: “mas não era uma festa à fantasia?”, perguntou, assustado.

00h27 – “O jantar estava ótimo”, diz meu colega à noiva, antes dela sair, morrendo de sono. Preferia ficar mais, afinal o papo estava ótimo. Decidiu ir para casa descansar. Deu um beijo de despedida e se dirigiu ao elevador – só depois dela fugir do campo de visão, a porta se fechou. Sem tirar a mão da maçaneta, os dois primos sorriem: “é agora!”. Em cinco minutos, já estavam na garagem do prédio, prontos para cair na gandaia.

01h23 – Era a vez da minha amiga entrar na avenida, em uma das 33 alas da escola. Discreta, bem no meio dos foliões – não quis correr o risco de ser flagrada por uma câmera. Num relance, percebeu que os marmanjos atrás dela permanecem de costas. O motivo? A passista seminua, entre uma ala e outra, vindo logo atrás…

02h01 – Baiano estava sumido, em algum ponto do bar. Percebi isso naquele instante, ao despertar momentaneamente de um papo com uma velha conhecida. Ela estava com uma roupa preta, estilo anos 20. Linda. Ah se ela me desse bola. Baiano reapareceu, ao lado do meu amigo DJ, vestido de cientista louco. “Começo a tocar às três horas”, disse ele, faceiro. Ao mesmo tempo, Baiano riu e chorou.

02h14 – O desfile estava quase no fim, e minha amiga não conseguia conter a alegria. Estava maravilhada: não imaginava que a Nenê pudesse contar com torcida própria, cantando e balançando faixas de apoio à escola nas arquibancadas. Percebeu ainda que a grande maioria dos componentes – inclusive os diretores de harmonia – estavam embriagados. “Se todo ano é assim, como pode uma agremiação dessas ter conquistado onze carnavais”, questionou. Não importava. Tudo era festa.

02h25 – Depois de pegar um refrigerante, vou atrás do Baiano. Faço a ele a pergunta mais imbecil da noite: o que está achando? A resposta: “simplesmente a pior coisa que já vi. Só tem gente esquisita, parece que querem se matar. O ambiente é escuro e cheira a mofo. E está tocando Joy Division”. Não pensei duas vezes: “Então vamos nessa”, disse. Nem pude me despedir direito do pessoal.

02h37 – Santos não parecia a mesma dos outros carnavais: meu colega e seu primo até se esbaldaram, mas sentiram falta daquele algo além. Ou vai ver estavam “velhos demais” para brincar como antigamente. Resolveram voltar logo para São Vicente. No caminho, o primo rondoniense – que nem tinha bebido tanto – maquinou um curioso plano.

02h45 – Felizes e satisfeitas, as duas companheiras de avenida encontraram um terceiro conhecido em comum. Tinha desfilado na ala dos compositores da escola – sabe-se lá como conseguiu o traje. “É pra impressionar a mulherada”, comentou, antes de gaguejar ao ser questionado se sabia a letra do samba. Minha amiga despediu-se, levando a fantasia para casa. A outra ainda sairia pela Leandro de Itaquera – vai ser fanática assim na Sapucaí…

03h04 – No caminho do bar ao hotel de Baiano, poucas palavras. Eu, uma pedra, pedi desculpas por ter sido responsável pela “pior noite de Carnaval de sua vida”. Uma das mais horríveis sensações que podemos sentir é a que vem após levar alguém que gostamos para uma roubada. Antes de me despedir, falei em passar um próximo Carnaval em Salvador. Também desejei a ele um fim de folia menos “underground”…

03h39 – Um gol branco, guiado pelo meu conhecido, circulava por uma rua quase deserta de São Vicente. Ao longe, perto de um bar de esquina, avistaram um sujeito barrigudo, sem camisa, ralhando com uma mulher. “É ele mesmo”, pensou o primo rondoniense. Abaixou-se e pegou o tapete de borracha. Enrolou-o, transformando num porrete. “Acelera”, disse, enquanto abria o vidro do carro e jogava o corpo para fora. “Chega mais perto”, arrematou, enquanto se aproximavam do tio rabugento. Em poucos segundos, o caiçara levou uma sonora “tapetada” nas costas. Pisaram fundo e ouviram gritos de “pega ladrão!”. E riram como nunca fizeram em toda uma vida.

04h21 – A caminho de casa, meu celular tocou. Chateado, nem vi no display a origem da chamada. Só me dei conta quando ouvi a voz dela: “você foi muito importante para mim nessa noite, meu anjo. Obrigada!”, disse, ainda no ônibus. Tinha conseguido embarcar, e em algumas horas, estaria na casa da irmã. “Não por isso, você será sempre importante”, respondi.

06h47 – Quase na hora do café, os foliões catarinenses caíram de novo na cama. Agora sim, exaustos após intensa maratona – ainda que sem um único beijo na boca. Ainda restavam dois dias de festa antes do retorno, na quarta-feira.

Nesse meio tempo, muitos levavam o máximo de mulheres possíveis para a cama. Alguns, em coma alcoólico, eram encaminhados ao pronto socorro. Outros tantos pegaram a estrada e voltaram para casa, insatisfeitos com a quantidade de gente na praia ou com o mau tempo no litoral. Os que não desistiram, disputavam com vinte ou trinta pessoas um espaço na sala ou no quarto da casinha alugada. Os demais não saíram da frente do televisor, ouvindo Chico Pinheiro, Repórter Vesgo ou Astrid Fontenelle…

Comentários em blogs: ainda existem? (7)

  1. Marmota, este é um de seus melhores textos em toda a história deste blog. É a prova de que o ser humano consegue se aprimorar depois de muita prática, ou de que o seu carnaval enfurnado num inferninho black-mofo-soul-dark fê-lo (existe essa expressão?) recarregar suas baterias para escrever neste ano de 2005.

  2. E enquanto uns desfilavam, outros se entregavam aos pecados carnais e alguns viam os desfiles na TV, uns poucos estavam tomando chuva, andando os quinhentos metros do sambódromo, tentando entrevistar a Sandy sem apanhar, todas essas coisas… como eu, por exemplo. Mas o texto ficou ótimo!
    Um beijo,
    Amanda

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