Sobre iogurte, cariocas, desejos e outras sapucadas

Recebi uma mensaginha bacana há instantes: “E aí! Como foi seu Carnaval?” Decidi responder brevemente, por meio de alguns apontamentos aleatórios.

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Só um idiota faz a mesma bobagem duas vezes, esperando resultados diferentes. Já experimentei o trecho entre São Paulo e Taubaté, mesmo caminho para o litoral norte, São Luis do Paraitinga, entre outros destinos concorridos. Mesmo assim, decidi sair de casa rumo à capital fluminense na manhã de sábado. As mesmas cinco horas que levei para percorrer, em uma tacada só, toda a viagem na volta, foi suficiente para chegar à terra de Monteiro Lobato. Somando a parada obrigatória para o almoço em Penedo, na companhia da vovó Claudia, foram doze horas de uma ponta a outra da Dutra. Se fosse um desfile na Sapucaí, perderíamos pontos na evolução.

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Enfim, deu tempo suficiente para a bruxinha e eu exercitarmos nosso amplo conhecimento carnavalesco e arriscarmos prognósticos durante uma criteriosa audição dos sambas-enredo. “Esse papo de seiva não está com nada”, dizíamos, sem fazer qualquer referência a iogurte. “Esse é sobre África. Esse, sobre Nordeste. Outro África. Outro Nordeste”, excluíamos, lembrando de Portela e Imperatriz mostrando Bahia na sequência. “Já viu o clipe da Mangueira? É lindo e emocionante… E falam do Rio! Vão ganhar!”. Que tolice viver a vida sem surpresas.

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A propósito, no site da Liesa é possível encontrar tanto as justificativas dos jurados (descontei três décimos da bateria cujo timbre dos surdos estava pouco definido) quanto as referências bibliográficas apresentadas pelos carnavalescos. É delicioso.

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Eu tenho uma teoria. Todas as coisas legais da vida passam por quatro estágios: a identificação, a popularização, a desencanação e, finalmente, a incorporação permanente, independente das reações de fora. Este ciclo se aplica aos blogs, aos relacionamentos e aos blocos de Carnaval no Rio. “Eram poucos que ficavam na cidade nessa época, mas de uns cinco anos pra cá, os blocos foram redescobertos pelo carioca e ficou gostoso passar o feriado aqui”, explicou a Luninha, que foi uma entre milhões de foliões nas ruas da Cidade Maravilhosa. Pessoalmente, fiquei assustado com o volume de gente nas minhas duas tentativas de entender a dinâmica: em um que não sei o nome, mas adoro chamar de “bengalafubanga”, mal dava para enxergar os músicos. Situação parecida na apresentação do bloco Sargento Pimenta, também no aterro do Flamengo: a banda é realmente boa, mas as pausas entre uma música e outra, bem como parte da multidão, complicam a experiência. Sintomas da fase “popularização”, creio: quando cordões da bola preta questionarem “pra quê dois milhões”, vai melhorar. Ah, sim, amigo nativo: pode me dizer que escolhi dois exemplos ruins. Fica a lição para o próximo.

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Se bem que, se contarmos os cinco dias de feriado prolongado, e descontando o tempo na estrada, podemos proclamar a fundação do Grêmio Recreativo e Escola de Samba Acadêmicos do Ar-condicionado. Uma agremiação que levou um saco de confetes na mala, e que voltou a São Paulo do mesmo jeito.

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“O Sambódromo é considerado o lugar mais seguro na América do Sul, pois há uma concentração muito elevada de celebridades nacionais e internacionais, políticos e pessoas importantes entre a multidão. Ele é rodeado por cercas de perímetro enorme onde ninguém pode passar sem ser revistado, tanto por razões de segurança quanto por razões comerciais” – pincei este parágrafo de um site que comercializa ingressos para a Sapucaí. De fato, a movimentação dos arredores não intimida: meu maior apuro foi ter atravessado uma passarela improvisada, sobre a Avenida Presidente Vargas, enquanto um engraçadinho a balançava. A caminhada ao setor 11, mais ou menos sinalizada, terminou com uma infra-estrutura agradavelmente organizada – destoando do absurdo processo de compra, que exige um aparelho de fax para o envio das instruções. Fax, vejam vocês. A arquibancada, como num GP Brasil de Fórmula 1, estabelece prioridades para quem chega cedo: os retardatários levam tempo – e já são cutucados por gente que se posiciona como proprietário do espaço – mas logo se enturma.

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Antes de viajar, esperava assistir a uma espécie de “peça teatral a céu aberto”, numa experiência diferente da que temos no sofá, pregando os olhos madrugada adentro. Do alto da arquibancada, perdem-se detalhes relevantes (leia “peitões”), no entanto a tela não proporciona o divertido ritual: dos 80 minutos que cada escola dispõe, ela passava diante dos nossos olhos por mais ou menos 30, momento em que os personagens ao redor se levantavam e também se apresentavam. Ninguém precisava de Jennifer Lopez diante do rapaz meio afeminado, purpurinado, requebrando na velocidade cinco ao som da bateria; do portelense, em silêncio respeitoso por todo o tempo, mas sem perder a harmonia durante o desfile de sua escola; das moças argentinas que iam de um lado a outro especulando os aparentemente disponíveis; do senhor britânico, verdadeiro “Doutor Livingstone”, impassível a cada desfile, como se estivesse numa partida de Wimbledon; e da gringa mal educada, que passou parte da noite em minha frente, ostentando um penacho na cabeça – praticamente minha visão por parte da noite.

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Imagine o seguinte diálogo.

– Você é o responsável pela Porto da Pedra?
– Sou, sim. Pois não.
– Olhe, meu amigo, tenho aqui a grande oportunidade da história de sua escola. Pense em todo o dinheiro que você puder imaginar. Grana suficiente para montar os mais belos carros, as fantasias mais brilhantes, a combinação mais linda de texturas, cores e elementos tecnológicos. O que acha?
– Acho ótimo! Mas… Assim, de mão beijada?
– Mmmhhh… Bem, na verdade, tem um requisito. O enredo precisa ser IOGURTE.
– Cuma?
– Iogurte, oras. E podia ter lactobacilos vivos na comissão de frente. E uma ala da coalhada. Ah, e um carro cheirando morango…

Só pode ter sido assim, e por mais que eu tenha me esforçado, só a tigrinha do abre-alas salvou. Iogurte? Enfim, depois da queda, li uma declaração do presidente. “Não me arrependo, Carnaval é negócio”. Bem feito.

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A propósito, Paulo Barros, espécie de Joãosinho Trinta de uns 20 anos atrás: “adoraria ter feito um desfile sobre iogurte”.

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A propósito, Max Lopes, espécie de Max Lopes de uns 20 anos atrás: “não fui demitido, saí da Imperatriz numa boa”. Não importa: pagou o preço por ter ignorado a bruxinha. Em abril de 2011, ao saber das intenções da tradicional escola de Ramos, a bruxinha redigiu uma mensagem endereçada a Max Lopes, apresentando-se como especialista em Jorge Amado e disposta a contribuir para um desfile extraordinariamente sensacional. Foi ignorada. Resultado: escola empacada com carros problemáticos; teto caído na Casa de Cultura estilizada do último carro; Donaflor grafado assim; sambinha mais ou menos, Max Lopes demitido. Mexe com a bruxinha, mexe.

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Definitivamente, a bruxinha e eu somos especialistas em Carnaval. Acreditávamos que a Renascer tinha chances de ficar no Grupo Especial. Adoramos a Comissão de Frente da Mocidade, bem como a solução de um carro: Dom Quixote saindo de um livro, em alusão a uma ilustração de Portinari. “Os caras da Imperatriz deviam ter feito isso”. A propósito, tanto Mocidade quanto Beija-Flor – a maior torcida presente no sambódromo naquele domingo – foram ovacionadas com aquele desconfiante grito de “é campeão”. O sono e o cansaço nos privou do desfile da Vila Isabel, considerado o melhor do primeiro dia. Mas na caminhada pela Presidente Vargas, ao lado da concentração, encontramos atrás da grade um feliz Martinho da Vila posicionado em seu carro. Os gritos dos populares resultaram num aceno. Enfim, deu tempo de chegar ao hotel, ligar a TV e vê-lo passando perto da torre de TV. Além de alguns peitões.

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Aparentemente, nem todo mundo estava ligado nos desfiles. Mal nos acomodamos na arquibancada, o guri que nos acompanhava pediu meu celular para brincar de “fruit ninja” ao som da bateria. Foi assim até a bateria acabar – a da escola, a do aparelho e a dele, que cochilou durante a passagem da Mocidade. Antes, deu tempo de interagir com Johanes, simpático alemão de Munique, que acompanhava o carnaval carioca pela primeira vez, ao lado de sua companheira Sophia, de Viena. Ofereceu seu Cheetos, mostrou seu recorde após destroçar melancias e ganhou balinha. Aprendeu a falar “danke schoen”, aumentando o sorriso do casal.

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A propósito, no dia seguinte, o rapazinho nos surpreendeu, cantarolando “as cores da felicidaaadeee… Na minha aquareeelaaa…”. Ora vejam, era o samba da Mocidade, que passou quando ele estava em estado de sonolência! Sinal de que há um fundo de verdade naqueles velhos esquemas do tipo “aprenda inglês dormindo”, com fitas-cassete e fones adaptáveis ao travesseiro!

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A maioria das imagens desse texto são da Sapucaí, pinçadas da máquina da bruxinha. Tinha outras fotos bacanas para compartilhar, mas não deu. Assim que pegamos o carro em direção a Dutra, na manhã da quarta-feira de cinzas, vacilei ao parar no semáforo e fui surpreendido por um sujeito de boné, que se apresentou na janela levantando a camisa e mostrando uma arma na cintura. Passou pouco mais de um minuto pedindo celulares, dinheiro, colares, ameaçando “cometer alguma besteira ao contar até três”. Dos males, o menor: com o sinal verde, pediu simplesmente para “arrancarmos dali” – o que fiz prontamente, momentaneamente na contramão da via paralela a praia do Flamengo. “Fico muito chateada por vocês e envergonhada da minha cidade”, disse uma amiga, ao saber o que houve. Seria injusto punir o Rio, ainda mais depois de um feriado sem qualquer contratempo. Até porque, a mesma cena poderia ter sido em São Paulo.

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A propósito, conhece a função “Find My iPhone”, aquela que te dá a localização do seu aparelho num mapa, mediante seu login e senha no iCloud? Desde minutos após o assalto até agora, aguardo ansiosamente algum aviso diferente de “desconectado”. Ao menos o backup de dados do aparelhinho funciona lindamente.

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Ouvi do mesmo garotinho sapeca um pedido aos mestres acadêmicos do ar-condicionado:

– Eu queria um sabre de luz de presente…

E eu voltei dessa viagem querendo ter aproveitado mais a atmosfera carnavalesca das ruas; experimentar o tal rodízio de petiscos em algum boteco na orla; passar mais tempo com a Luninha, a Viva, a Cláudia; arquitetar um encontro entre o guri, recém-aceito em um conservatório musical, com o Léo, músico profissional que estava bem perto da gente; ter a chance de dar um abraço nas duas Lúcias: uma que convenceu a amiga, há um ano, das delícias cariocas de momo; outra que não faz ideia, mas fez com que o menino sonhador dormisse feliz da vida abraçado em uma marmota de pelúcia que ganhei há algum tempo; e finalmente sonhar com o dia em que será possível passar por momentos especiais com mais frequência. Saudade do tempo em que meus pedidos eram simples como o de uma criança, ainda que a lição seja a mesma: a vida se move na velocidade dos nossos desejos.

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Enfim, bem que tentei matar saudades da Sapucaí ao sintonizar o SBT durante o Desfile das Campeãs, no sábado que recebemos de volta a hora que pegamos emprestado em outubro. Então Carlos Nascimento, diante da serpente que muitos viram no dia (e que uma equipe de transmissão deveria estar preparada para saber), leu seu script: “E este é o carro abre-alas, que relaciona as lendas indígenas com o Maranhão…”. Seguido pelo comentarista: “Bem, na verdade, essa é a comissão de frente…”. Minutos depois, quando os componentes “saíram da cobra”, o âncora se surpreende: “Ei, vocês viram isso? Viram isso???”. Desliguei a TV e fui deitar, afinal, já fomos mais inteligentes.

Agora sim, feliz ano novo.

Comentários em blogs: ainda existem? (6)

  1. Se tudo der certo, ano que vem vou estar lá tb!
    O texto passeia por tanta coisa que fica dificil cometar uma ou outra, risos!
    Mas decidi comentar sobre a diferença do carnaval de Sampa, pelo menos no que li.
    Aqui nunca encontrei tanta divercidade de povos assistindo, mas a cada ano a qualidade das alegorias e fantasias chega perto do primor do carnaval do Rio.
    E isso me deixa feliz por Sampa.
    Otimo texto!

  2. PUTAQUIPARIU, roubaram teus sapinhos! Que molecagem, tem que chamar o IBAMA! Revoltante!

    Bom, e precisava ter um site da LIESA de SP, com todas as súmulas. Esse foi um achado.

    Abração pra você!

  3. Pior é que eu pretendia mandar um mail sambando na cara do Max Lopes, mas como ele foi demitido perdi o contato com ele…

    Só tenho mais uma coisa a dizer: chez michou a vaca preta, André Rosa!

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