Seja bem vindo a nossa cidade, amigo motorista. Mas tenha cuidado: você está em um lugar com mais de seis milhões de automóveis. Aqui a lei é a da buzina. Ou a da luz alta, se você estiver na estrada. Não há nada que se possa fazer diante do inevitável: ao tomar posição em seu veículo, o nativo desta região se transforma em uma ameaça. Não importa o que aconteça, estará sempre com a razão. Pior: no trânsito, é capaz de qualquer coisa para mostrar que está certo.
Está a pé? Mais grave ainda. Infelizmente, nossa cidade não foi feita para vocês. Não existem calçadas. As poucas faixas destinadas aos pobres andarilhos parecem estacionamentos. Tentaram catequizá-los com novos códigos e radares fotográficos, mas essa gente se diz poderosa. Contam até com indústrias paralelas, ligadas aos criadores desta legislação, para livrá-los da punição. Uma verdadeira ciranda da alegria, movida a muito dinheiro.
Mas não é preciso ir tão longe para ver o avanço dessa cultura. Esses dias perambulava pela rua, dessas de mão única, razoavelmente movimentada. Num relance, um caminhão tipo baú surgiu do nada. Estava na contra-mão. Olhei com espanto, até ser abordado por um cururu – também chamados sem-noção, joselitos ou ainda champinhas.
– Coé?
– Bem, você sabe que isso aqui não é possível, né?
– E puracaso você é PULICIA?
Nem polícia nem louco de argumentar com o sujeito… Pois é, meu amigo, já dizia nosso presidente: tem lei que pega, tem lei que não pega. Para pegar, é preciso que as pessoas falem dela para que haja respeito. E que se cumpra, evidentemente. Mas ao mesmo tempo, você não acha importante a presença de responsáveis pela fiscalização e orientação destes seres alterados?
Concordo com você! É por isso que contamos com pessoas dedicadas, verdadeiros heróis nessa terra de ninguém. Sujeitos incríveis e imprescindíveis como um homem que conheci nessas perigosas andanças: o sargento Amão.
Conheci Amão quando circulava noite afora, por uma rodovia perimetral de nosso aprazível município. Como de praxe, estava indignado com os ases do asfalto, que rasgavam o chão em seus bólidos como se fossem personagens do clássico Dias de Trovão. Alguns quilômetros depois, uma surpresa: alguns deles foram intimados pelos oficiais da patrulha, comandados por um sargento bonachão e com cara de mau. Reduzi a velocidade assim que o vi, apontando sua lanterna em minha direção. Pediu para que eu parasse, assim como os outros.
– Puxa, o senhor não imagina como é bom ver o senhor! Acredita que estes cidadãos que…
– Quieto. Documentos.
Tudo bem, devia ser da personalidade dele. Obedeci pacientemente, entregando-lhe a documentação de porte obrigatório. Enquanto procurava minha habilitação, Amão deu uma volta completa ao redor do carro. Antes que eu pudesse entregar a carteira, seguiu o diálogo:
– O senhor sabia que a lanterna do seu lado esquerdo não está funcionando?
– Como? Não acredito… Se incomoda se eu der uma olhada?
Saí do carro e, com o auxílio da chave, retirei a proteção do farol traseiro. Mais alguns segundos para constatar o óbvio: a lâmpada estava queimada.
– Puxa, que chato… E o carro é novo… Pior que não tenho nenhuma sobressalente no porta-luvas…
– Sinto muito, mas vou ter que autuar o senhor. Nesta semana, o senhor precisa levar o seu carro ao departamento para efetuar a vistoria.
Uau! Uma multa por conta de uma lâmpada queimada! Esse cara é fera! Não deve sobrar um único meliante vivo nas mãos dele! Tudo bem, levaria uma multa imbecil por conta de um problema técnico que nem cometi, mas ao menos ganhei um ídolo!
Quer dizer… Bem, não foi bem assim que as coisas terminaram. Amão ficou alguns segundos parado, me olhando. Minha aparência era tranquila: não estava preocupado com suas palavras, tampouco indignado. Simplesmente impassível.
– Olha, vou te multar!
– …
– Você ouviu bem? MULTAR! – repetiu, estendendo discretamente a mão direita.
– Sim, eu entendi. Estou esperando, senhor…
– Amão. Sargento Molhando Amão.
Naquele instante, pude ler os pensamentos de Amão. “Se eu multar esse paspalho, ele vai pagar normalmente, vai trocar a lâmpada, fazer a vistoria e seguir sua vida. Usei minha intimidação de graça. Droga!”.
– Tudo bem, vai embora. Faz de conta que eu não vi.
Pois é, meu amigo. Mais uma vez, seja bem vindo, e sinta-se protegido no maravilhoso território comandado pelo sargento Amão e seus fiéis aliados, onde manda quem tem voz e obedece quem tem dinheiro.
E eu, uma pedra. Ainda por cima não sei desenhar: essa história, baseada em fatos reais, ficaria bem melhor em quadrinhos.
(Postado em 16/11/2003. E em uma semana com rachas, acidentes e outra porção de imprudências pelo país, patrocinadas pela sensação de impunidade, permanece horrivelmente atual).
Bom texto Andrézão, e pior que é assim mesmo. Como eu falo sempre, se não fossem os corruptores, poucos corruptos existiriam. Eu já tive ótimas experiências com a policia rodoviária estadual (sem viadagens, please) quando precisei mesmo deles nas estradas. Como em tudo, existem 2 lados, sempre.
Abração broder
Encontrei o irmão do Amão aqui pelo PR, numa dessas viagens Curitiba-Londrina.
– Filho, vc estava a 125 km/h (com um Uno depois de uma mega subida)´. É sua primeira MULTA? Que pena… (o famoso tempinho). O que vc faz?
– Sou jornalista.
– (olhos arregalados) Vc tem a carteirinha?
– Tenho,está aqui.
– Pode ir piá. Boa viagem e cuidado aí na estrada.
E foi a primeira e única carteirada que dei na vida. Mesmo que tenha sido a carteirada-involuntária.
Chama o BOP pra ele André!!!!! Hehehehe…até parece! Estou com saudades de vc. Quando é que vai me ver cantar, hein? Beijinhos
Isso me leva a crer que as puliça de São Paulo é mais legal e criativa que as puliça do Rio. Meus achaques aqui foram bem menos românticos…
Que absurdo!!!!!!!!!
Meu… socorro, viu!