Liga pra esse homem e diz que é pra ele reinventar

Não é todo dia que alguém faz uma pergunta como essa:

– Você viu que apareceu uma “Xurrasca”, que é sósia do “Xurrasco”?

Meu repertório semântico, pautado em maminha na manteiga fatiada sob uma parrillera uruguaia, não tinha registro, até então, de um garoto que parece ter saído de um bairro caiçara, no Litoral Norte, reconhecido após viralizar no TikTok requebrando ao som de um cover da Nelly Furtado.

A notícia – ou termo equivalente se considerarmos ao menos o multiverso do Xurrasco – é a de uma mocinha emulando os trejeitos do rapaz.

O multiverso do Xurrasco, por sua vez, é só uma entre bilhões de teias intrincadas, costuradas dinamicamente por meio de sistemas computacionais desenhadas de acordo com os interesses de grandes corporações. Está tudo lá nos termos de uso e serviço das plataformas, devidamente assinaladas como lidas. É claro que você leu, não leu?

Há quem acorde, faça refeições, mantenha a TV ligada e vá dormir com o nariz na tela, arrastando o polegar curtindo cachorrinhos, depoimentos fortes, explosões, memes, registros de assalto à mão armada e a dança do Xurrasco.

Antes desse vórtice sugar cada um de nós para esse buraco de onde mal se enxerga o multiverso do Xurrasco cruzar num piscar de olhos, as pessoas se encontravam pessoalmente. Conversavam para arejar o cérebro. Eu tenho três ou nove fragmentos de ideias; ouço as suas, guardo algumas na gaveta, misturo outras com uma ou duas das minhas. É a tal dialética, que os antigos celebravam.

Hoje estamos enrolados em algumas dessas teias. Chamam isso de “Fomo” (acrônimo para “medo de ficar fora da patota”, em inglês). Ou, na versão extra-forte, de “Folo” (é o “medo do logoff”, de ficar “desconectado”). Quanto maior a enrolação, mais dinheiro para as grandes corporações que desenham o tal sistema.

Eles querem o seu tempo. O meu. O do Xurrasco. O da assessoria de branding e mídia da Taylor Swift. E daquele tio reaça que se sente o jornalista do grupo mutado da família. Não precisa conversar. Pensar, então, é bobagem. É só curtir. Compartilhar, Replicar. Pra quê trocar e refletir sob fragmentos de ideias se eu posso levar uma surra de estilhaços, arremessados nos sabores “feito em casa” e “coloridos artificialmente”?

Mal dá tempo de organizar a mente e sintetizar esse cenário em uma tuitada (e vai continuar sendo tuitada, elão mosca). A mesma voz que trouxe o Xurrasco pra pauta não está muito preocupada com o que eu possa explicar.

– Você devia parar de se preocupar. As coisas são como são. Comece a gravar selfies e vá ser um influenciador digital. Nunca é tarde para se reinventar e faturar.


Blé.

Por que isso me incomoda tanto?

Provavelmente eu seria ainda mais pobre e endividado se eu não levasse em conta o quanto esse vórtice está mexendo com o mundo do trabalho. Até recentemente, as pessoas me apresentavam como “blogueiro e jornalista”. Soa tão anacrônico quanto ser um franqueado da Blockbuster.

Sim, eu cheguei na idade em que posso assumir sem amarras o meu lado ranzinza que já ostentava no ginásio. Vai ver que, em algum lugar incrustado em meio às quinquilharias acumuladas na memória, ainda existe alguma essência. Aquilo que me define. A resposta que aquece minha alma para quando perguntam “qual o valor que as pessoas enxergam em você?”, que não cabe em uma palavra só. 

Provavelmente, “dialética” está contida nessa essência.

Não sou ingênuo a ponto de tentar frear a inércia que nos move. É preciso adaptar-se para sobreviver às teias que compõem o digiverso infinito da treta, zoeira, chorume e Xurrasco. Mas se não dá pra dialogar nesse lugar, é o desenhista dos sistemas computacionais que precisa se reinventar, não?

***

Obs.: O título é uma adaptação de um verso da música O Dono da Terra, cantarolado pelo trio infantil Os Abelhudos durante o Festival dos Festivais em 1985 – aquele vencido pela Tetê Espíndola. A letra evoca esse “gerente do planeta” que faz desse lugar um ambiente hostil a ponto de uma bomba explodir no trem ou uma criança ser largada à própria sorte. “Bora telefonar pra esse cabeçudo”, exige a garotada.

Outra obs.: Dizem que escrever é como andar de bicicleta. Depois que você aprende, precisa fazer alongamento, evitar planos inclinados e lembrar que os motoristas não estão nem aí pra você.

Comentários em blogs: ainda existem? (1)

Vai comentar ou ficar apenas olhando?

Campos com * são obrigatórios. Relaxe: não vou montar um mailing com seus dados para vender na Praça da República.


*