Sabe quando um comentarista de futebol cai na armadilha de avaliar como está o jogo e cravar algum prognóstico nos primeiros cinco minutos? Sabemos que é burrice soltar um “o desempenho do time da casa promete” e ser surpreendido por um gol sem querer dos visitantes aos quarenta do segundo tempo. Mas a frase acaba saindo, com facilidade de tamanho equivalente ao nosso medo do desconhecido. O futebol, assim como a vida, é uma caixinha de surpresas. E como é difícil aceitar isso.
Eu também banquei o tolo ao me esconder no meio do mato a partir dos últimos dias de dezembro. Quando janeiro deu as caras, soltei um atrevido “feliz ano da marmota”, numa alusão pouco criativa (e mentirosa) ao dois de fevereiro. Nosso dia de Iemanjá tem outro significado em um impronunciável município canadense norte-americano (bem observado, Adriano!) onde um ritual envolvendo o roedor prevê o rigor do inverno local. Creia (ou não) na rainha das águas ou no rei do buraco, Bill Murray e Andie MacDowell, sob a batuta de Harold Ramis (o Egon dos Caça-Fantasmas), ainda nos fizeram acreditar que o intervalo de tempo “da marmota” é aquele no qual a rotina é a única possibilidade.
Ao dizer “feliz ano da marmota”, quis confortar minha mente ao disfarçar meu incômodo, como se quisesse ignorar as surpresas da vida. Não sei quanto a você, mas olho para os últimos trinta dias e vejo reflexos de um turbilhão. Mesmo que elas sejam inevitáveis, insisti em uma negociação com o futuro. Lembrei que, desde as gambiarras no calendário feitas pela Igreja em 1582 e sua adoção universal ao longo dos séculos seguintes, temos uma coincidência: os dias do ano se repetem a cada 28 anos. Dessa forma, 2012 segue o mesmo caminho de 1984.
A URSS ainda existia…
Eu tinha seis anos naquela virada de ano. A imagem que surge em minha mente é a da televisão ligada no Viva a Noite (era aos sábados), com a Marriete, o Liminha, o Bugalu e a Galinha Azul revezando-se no papel de ponteiros num cronômetro, até o Gugu desejar felicidades enquanto um “Feliz 84” surgia no GC. Foi o ano de inauguração da Sapucaí, e a recém inaugurada TV Manchete mostrou com exclusividade aquele Carnaval – eu mesmo imaginei, por muito tempo, que aquele M ao final do desfile tinha a ver com a emissora… Curiosamente, vejam, a passarela do samba carioca passou por uma boa reforma: vai estar diferente, com novas arquibancadas para a festa de Momo dentro de alguns dias.
Claro que as coincidências existem apenas diante de quem as veem. As mais evidentes: 84 e 12 são anos bissextos; e também teremos Olimpíadas. Em Los Angeles, vimos os soviéticos e outros países socialistas boicotarem os Jogos, numa resposta a ausência dos EUA em Moscou. Agora, o boicote vai ser só nosso, por conta de uma briga envolvendo direitos de transmissão – consolidada justamente nos anos 1980 para garantir a realização de um evento esportivo deficitário e ameaçado. Resolveram um problema, vieram outros.
Não lembro nada daquelas Olimpíadas, apenas do Joaquim Cruz, medalhista nos 400m. Também tinha um albinho de capa vermelha da Coca-Cola, denominado “passaporte para os Jogos”, com explicações sobre as modalidades e figurinhas do Pateta. Estava na primeira série, era aluno da tia Amélia. Uma escola nova, como uma folha sulfite prestes a ser rabiscada – historinha que escrevi no mesmo colégio pelos oito anos seguintes. Ainda que eu tenha mudado meu papel na sala de aula, o mês terminou com uma notícia incrível: uma escola nova, como um tablet de 64Gb esperando por novos conteúdos e aplicativos.
Mas voltando. A tensão entre URSS e EUA, que estava prestes ao seu auge naquele tempo, remete às palavras de George Orwell, escritor que cunhou a expressão “Guerra Fria”. Dizia que o homem destruiria seu planeta por meio de suas armas. Ainda no pós-guerra, ao final dos anos 1940, Orwell lançou outra obra, vislumbrando uma sociedade vigiada por câmeras, controlada e punida pela razão, representada pela imagem aterradora por trás de telas (o “Big Brother”). O livro, alusivo a um jeito cruel de acabarmos com o nosso mundo, chama-se 1984.
Foi também em 1984 que o diretor James Cameron exibiu sua versão de extermínio futurista nas telonas, com o Arnold Schwarzenegger no papel de andróide. Recentemente, o cinema nos trouxe outro blockbuster, misturando complicações climáticas e calendário maia: 2012. Nova coincidência: se naquele janeiro de 84 o povo se engajava pedindo eleições diretas e aguardava, após o sucesso da novela Champagne, a estréia da dupla Glória Perez e Aguinaldo Silva em uma novela (ninguém lembra de Partido Alto), nosso janeiro começou com a possibilidade do PT disputar a prefeitura de São Paulo com um vice indicado por um partido amorfo, dissidência do PFL – que, por sua vez, foi dissidência do PDS. Adicione o Michel Teló, a Mega-grávida de Taubaté e o Globo Esporte de São Paulo e Big Brother como entretenimento nas evidências do apocalipse e pronto.
Mas enfim. O ano de 1984 não teve só Exterminador do Futuro, mas também História Sem Fim (aquele do Atreio), Amor com Amor se Paga (aquele do Nonô Corrêa), Loucademia de Polícia, Jerônimo (aquele justiceiro do sertão!) e Caça-Fantasmas (aquele do Harold Ramis). Teve também o primeiro bebê de proveta do Brasil (hoje uma moça bonita de nome Anna Paula Bittencourt Caldeira), o lançamento do Macintosh (em um comercial que remete ao Big Brother de Orwell), Serginho Chulapa no Santos e Ayrton Senna na Toleman. Teve ainda uma pedra na vesícula da minha mãe, que naquele ano, foi diagnosticada como hepatite… E impressiona, ao vê-la passar mal 28 anos depois, uma legião de médicos ainda sofrerem para acharem um diagnóstico – descobri o que é fibromialgia depois de ouvir falar em reumatismo, dengue, toxoplasmose.
Relembrar as vitórias e os desafios também é viver, enquanto tentamos prever como será o amanhã. Passamos, sobrevivemos e aproveitamos por 1984. Que 2012 também seja divertido, promissor e surpreendente.
Eu não lembro absolutamente nada do meu 1984, mas tenho certeza de que o do George Orwell seria muito mais divertido.
Ei, mas Punxatoney não é impronunciável! E eu pensei que ela ficava nos EUA…
Que delícia de crônica, André. Fico encantada com voce consegue colocar tantos assuntos num liquidificador e dele sair um texto tão interessante!
A propósito, em 1984 eu estava me casando.
Foi o ano em que fui ser aluno da Tia Suzana, uma velhinha magrinha, de cabelo de algodão doce (pelo menos eu imaginava que fosse), temida na escola inteira. Um garoto mais velho tinha me contado que ela beliscava os alunos.
No final de 1984, a Tia Suzana se revelou uma das melhores professoras que já tive. Era dócil, gente boa e, como não éramos lá muito comportados, de vez em quando impunha respeito. Dava broncas, mas era justa. E não beliscava.
Me anima pensar que neste ano estou morrendo de medo de uma cliente que está por vir. Será ela a Tia Suzana de 2012?
Eu tinha 2 anos… não lembro de nada, a não ser de uma cortina de miçangas que ficava em um bar/mercearia ao lado da casa onde eu morava com meus pais em Águas da Prata-SP.
Foi também o ano em que minha mãe não resistiu a um aneurisma, mas não me lembro.
Adorei saber dessa coincidência de 28 anos… estou ficando velha! 😉
Tinha de 9 para 10 anos em 1984 e me lembro bem dos fatos daquele ano. Para mim, os mais marcantes foram a campanha das Diretas-Já; a vitória de Paulo Maluf sobre Mário Andreazza na convenção do PDS (Maluf disputaria a presidência da República com Tancredo Neves); o ouro de Joaquim Cruz (brasiliense de Taguatinga) na Olimpíada de Los Angeles; os sucessos de Michael Jackson e Menudo; e as novelas globais “Champagne”, “Transas e Caretas” (com o robozinho Alcides) e “Vereda Tropical” (com Mário Gomes interpretando Luca, jogador de futebol pelo Cantareira).