Poderia fazer como muitos colegas e elaborar algum comentário sobre o único candidato a presidente em 89 cujo jingle ainda é vivo em minha mente: “lá lá lá lá lá… Brizooola…”. Comentar que o velho caudilho foi velado como ex-chefe de estado, a constrangedora recepção do presidente Lula, a incrível cobertura da inimiga Rede Globo… Ou apenas concordar com todas as definições de “brizolismo” encontras fora do Aurélio – inclusive a prática, que transformou o Rio de Janeiro na bagunça que é hoje.
Mais fácil (e rápido, principalmente) é reproduzir um dos vários textos sobre o tema. O que você vai ver a seguir é de Elio Gaspari, publicado, entre outros jornais do país, no Globo, nesta última quarta-feira. Com uma definição que considero perfeita: com Brizola, acaba-se o século XX.
O século XIX brasileiro terminou em 1891, com a morte de D. Pedro II e o XX, em 2004, com o fim de Leonel Brizola. Num caso, pela importância do falecido. No outro o declínio embutiu-se na longevidade. Nos dois, o imperador e o engenheiro foram derradeiros depositários dos sonhos, dos pesadelos e das desgraças que fizeram a história de seus tempos. Mortos, fecharam a cena, mesmo depois de terem deixado de ser protagonistas.
Deixando-se de lado o Pedro Banana, Brizola foi o último personagem da História de uma geração que viveu paixões e antagonismos a um só tempo insuperáveis e inúteis. Noves fora Juscelino Kubitschek, com seu enorme sorriso e sua fé no progresso, os principais personagens desse tempo escreveram páginas de rancores e ódios, para nada.
Foram muitas as encrencas nacionais do século XX, mas a maior delas aconteceu em 1964, quando o Brasil marchava para uma divisão que parecia irremediável. De um lado estava JK, candidato a presidente por uma coligação conservadora muito parecida com a que o tucanato prepara em benefício de FFHH. De outro, Carlos Lacerda, candidato de uma frente feroz, modernizante e cesarista.
Nos primeiros meses de 1964 a direita não admitia que JK fosse eleito presidente e a esquerda não aceitava que Lacerda sucedesse a João Goulart.
Vieram os generais e deu no que deu. Passados vinte anos de ditadura, qualquer lacerdista seria capaz de reconhecer que JK teria sido a melhor escolha. E qualquer esquerdista preferiria ter visto Lacerda no Planalto.
Caiu-se no atoleiro porque nenhum dos dois grupos tinha compromisso com a democracia. Melhor dizendo, ela era um brinquedo que só servia como instrumento de vitória.
Brizola morreu num novo século de um país em que não há mais espaço para apelos (tão ao seu gosto) às raízes nacionalistas dos militares, nem às insurreições dos despossuídos.
Será sepultado em São Borja a um só tempo o campeão da legalidade constitucional de 1961 e o último manda-brasa do século XX.
Vale lembrar suas palavras no dia 13 de março de 1964, quando se supunha que as forças civis e militares anexas ao dispositivo político de João Goulart arrastariam as fichas do impasse constitucional que cevavam: “O Congresso é hoje um poder que está comprometido, que se compõe de uma maioria de privilegiados. (…) Portanto, aqui vai uma palavra de quem deseja uma estrutura reformada, de quem deseja ficar livre da espoliação internacional. Por que não transferir a decisão para o próprio povo brasileiro, fonte de todo o poder?” Cunhado do presidente e candidato à sua sucessão, queria uma Constituinte que lhe desobstruísse o caminho para o Planalto. A ditadura militar obstruiu-lhe a vida, obrigando-o a 15 anos de exílio.
Nomeando-se herdeiro de Getulio Vargas, Leonel Brizola viveu carregando a bandeira do trabalhismo (seja lá o que for que isso signifique). Morto, reavivou emocionantes lembranças do século XX, mas deixou pequena herança ao XXI.
Leia também: Brizola, o patriarca sem herdeiros
Esse ano eu me enfiei nos livros sobre ditadura, política, presidentes, Jango… E eu sempre pensava “Nossa, só sobrou o Brizola e o ACM”. Agora eu penso: “Porra, tinha q sobrar o ACM?”.
Conte comigo:
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Um único pensamento me vem à mente: Daqui há alguns anos estaremos velando outro politiquinho que deu um jeito de entrar para a história, ainda que pala porta dos fundos, sem se importar com quem votou nele. A obrigatoriedade do voto vai produzir Brizolas por toda a eternidade. …(suspiro!)
Assim como temos um na presidência…
Brizola foi um grande político na oposição, nos momentos de crise. Na calmaria, no governo, foi uma negação. Mas marcou a história do país.
“Os principais adversários de Leonel Brizola vão se perdendo nas entrelinhas da história. Alguns deles chegaram a níveis muito altos de importância política em seu tempo, mas não se fizeram marcar como personagens da grandeza ou da tragédia de um momento que a história não consiga esquecer. O levante iniciado e liderado por Brizola em defesa da legalidade constitucional e do regime democrático contra o golpe que as Forças Armadas perpetravam, em 1961, é um dos momentos épicos que demarcam a história, indeléveis e quase sempre únicos.
Um governador que lá do último sul ousa dizer ‘não aceito’ às Forças Armadas do país todo, e só com a sua polícia militar inicia uma resistência cuja convicção conquista parte dos militares estacionados no Estado, e vence afinal -essa é uma cena a que ninguém pode negar o lugar de culminância na penosa luta pela democracia no Brasil. Culminância diferente da outra, a resistência armada à ditadura, porque não se nutriu de razões ideológicas, do projeto de revolução social, mas tão só da legalidade e da democracia como expressa na Constituição.
A coragem pessoal e política de Brizola já lhe reservaria um lugar especial no último meio século brasileiro. Mas a lealdade que teve às suas idéias, por tanto tempo, é outra característica pessoal e política sem paralelo entre os seus adversários e aliados. Em outro aspecto, o da lisura, não seria caso isolado, mas é caso único em um sentido: ninguém teve a vida mais esmiuçada pelos Inquéritos Policiais Militares, às dezenas, algumas investigações por mais de dez anos; nenhum governador foi jamais tão espionado, grampeado, seguido, investigado quanto Brizola quando governador do Rio -e nada, nunca foi encontrado sequer vestígio de improbidade.
O esquerdismo de Brizola era, sobretudo, o nacionalismo. Integral, inviolável, o nacionalismo que, se igual nos militares com seu mito de patriotismo, os levaria a vê-lo como aliado. Odiaram-no como a nenhum outro político, nem Getúlio, nem mesmo Jango. Nacionalismo que deveria ser um ponto de aceitação de Brizola pelos comunistas. Abominaram-no como abominavam Lacerda. Mas, nesse caso, houve certa reciprocidade: a Brizola parecia intolerável a íntima relação de Jango com os comunistas, à qual atribuiu, já na época e até o fim, parcela muito grande da deterioração que antecedeu o golpe de 64. Àquela relação atribuiu, também, uma parte de sua própria radicalização no decorrer do governo de Jango, sendo a outra parte devida ao pressentimento de golpe da direita. Brizola imaginava conter o que considerava as duas ameaças.
Todo chefe político é um tanto caudilho, mas Brizola não cuidava de ao menos disfarçar esse componente, antes o exercia com evidência plena. Nas questões que tivesse como secundárias, fez política com o mesmo humor que exercia no convívio. Nas divergências que punham em questão assuntos a seu ver primordiais, foi sempre capaz de passar do gaiato ‘sapo barbudo’ ao ‘traidor’, e coisas assim, sem a menor complacência.
Mas não tinha um traço comum aos caudilhos: Brizola não era vingativo. Durante seu primeiro governo no Rio, teve que enfrentar, ou suportar, um canhoneio terrível do sistema Globo. Vinha de longe, além das divergências políticas, a inimizade de Roberto Marinho e Brizola. Ao assumir o segundo governo, Brizola encontra um fato surpreendente: o Projac, o grande centro de produção de novelas e seriados da TV Globo na Barra da Tijuca, estava em finalização, mas fora construído sem o obrigatório exame de impacto ambiental. Estava erguido em área onde o plano urbanístico proibia aquele tipo de construção e de atividade. Brizola repeliu o prato de vingança que alguns lhe mostravam, com a possibilidade de arruinar o investimento gigantesco do grupo Globo. Em vez disso, buscou um modo de legalizar o Projac.
Convencido de que a linha dura tentaria outro golpe ao fim do governo Figueiredo, Brizola chegou a propor a extensão do mandato do general. Foi dos primeiros a integrar a campanha das diretas, mas o gesto anterior ficou como cobrança inesquecível. Obcecado com problema da infância em geral e da infância pobre em particular, achou que investimentos de Collor na multiplicação de Cieps, os centros de educação integral, justificariam seu apoio a uma Presidência lamentável. O gesto ficou para cobranças que o acompanharam desde então.
Brizola nunca pediu, nem precisou fazê-lo, que esquecessem o que disse ou escreveu. Nunca traiu o que ofereceu aos eleitores como seu governo. Entre seus erros e acertos estiveram sempre a franqueza com os outros e a lealdade a si mesmo.
Brizola foi um homem sofrido de uma vida bonita.”