A Turma do Nemfú contra As Caras-de-pau

Pela primeira vez em cinco anos, a já conhecida e aclamada Turma do Nemfú decidiu quebrar uma de suas inúmeras tradições e reaparecer em Hopi Hari, o país mais divertido do mundo, ainda em 2007. Tudo para agradar a Naninha, uma das idealizadoras do passeio, que perdeu o único dia em que o parque estava absolutamente vazio. Logo no primeiro domingo de dezembro, as filas estavam mais tímidas que o de costume, mas estavam bem ali.

Aliás, qualquer fila serve como case de estudos antropológicos sobre o comportamento humano. Impaciência e nervosismo são capazes de despertar instintos horríveis, que culminam com uma total falta de respeito com o próximo. A começar com qualquer “furadinha” amena, passando pelas escabrosas situações envolvendo idosos ou crianças de colo, transformando um benefício justo em sacanagem. Todo dia alguém testemunha um galalau pimpão passar a perna em todos os bocós ao abusar do pai velhinho ou da esposa grávida: “chupem, eu tenho preferência”.

Eu não sei quem teve a brilhante idéia de organizar seres humanos em filas serenas, mas a cada instante aparece algum idiota resgatando as práticas medievais do “saiam da frente”. E as longas esperas dos brinquedos em Hopi Hari carregam uma porção de espertalhões. Usam aquele discurso patético: “ei, meus amigos estão ali…”. Ora, se são amigos, por que saiu de perto? Ah, foi ao banheiro ou pegou uma água? Mas que belo espírito de companheirismo, hein? O curioso é ver uns e outros concordando com essa “furada”. “Calma, não ligue pra isso. Você veio aqui para se divertir, não é?”. Ótimo. Deixe todo mundo passar e divirta-se também.

Mas enfim. A maior e mais angustiante fila de Hopi Hari é a Montezum, montanha russa de madeira que, de longe, é a atração mais disputada do parque. Naquela manhã, o brinquedo estava fechado temporariamente – mas de tão empolgante, já contava com uns cinco ou seis abnegados, alheios ao fato de que poderiam usufruir aqueles minutos em outra coisa. Até que um funcionário começou a caminhar, desde o alto do corredor-caracol até a porta de entrada, sinalizando a volta de Montezum. Nisso, a multidão já crescia. “Só se for agora, hein?”, convocou Pinguim, colocando a Turma do Nemfú entre os primeiros da fila.

Dez minutos após a liberação do funcionário: a bagaça já estava lotada como sempre. Devia ter umas cento e poucas pessoas nquele corredor estreito, esperando por praticamente um minuto de vertigem e agitação em grau elevado. Não demorou para que os primeiros “furões” aparecessem. Primeiro, uma mocinha apressada. “Bonito, hein? Furando a fila na cara dura!”, gritei. “Ei, dá um desconto, meus amigos estao ali”, alegou. Em seguida, dois moleques de cabelo pintado. Nova lição de moral. “Não enche, tio. Meu pai tá ali, deixa eu passar”. De verdade, não consigo entender como é que ninguém acha isso a coisa mais anormal do planeta.

Quando todos achavam que o abuso teria fim, as centenas de pessoas pacientes viram quatro mocréias atravessando a fila sem o menor pudor. Dava para ouvir algumas reações indignadas, mas faltava coragem a todos para simplesmente barrarem as baranguinhas. Eu e Narazaki, pessoas de educação tão larga quanto o abdome, nos entreolhamos e, sem usar uma palavra, sabíamos o que precisava ser feito. “Essas jabiracas acham que somos bobos, que dá para se esbaldar por aí e ir em busca do lugarzinho reservado. Quer saber? Daqui elas não passam”.

Finalmente, as quatro representantes do apocalipse chegaram. Bateram a cara nas nossas costas. Cutucaram. Com aquele ar que só reforça o péssimo estereótipo suburbano, pediram: “‘cença”.

– Olha, me desculpe, senhorita. Mas não vamos dar licença coisa nenhuma.

Vieram os primeiros gritos e aplausos da galera. “Mas a minha bolsa tá lá com os meus conhecidos, eles estão lá, e não sei o quê…”. Não adiantava. Elas foram escolhidas para pagar pelos pecados dos furões anteriores.

– Se você deixou seus amigos para trás, é problema seu.
– Ei, você aí da frente! Segura minha bolsa pra eu poder passar na frente também!

Enquanto permanecíamos imóveis, a multidão no corredor-caracol aumentava os gritos e aplausos. “Desce daí! Volta! Some!”. Antes mesmo das fubangas abrirem o bico para discutirem conosco, Rodgers Sabbaths subiu na grade e protagonizou a cena mais inesquecível da história da Turma do Nemfú. Apontou para as tribufus e questionou a massa, num grito.

Turma do Nemfú

– Elas podem passaaaar???

Negativas e assobios ecoaram. Sabbaths foi além.

– EU NÃO OUVI!!! ELAS PASSAM OU NÃO PASSAM???

Só aquilo seria suficiente para que as quatro modelos da campanha Fome Zero cuspissem no chão e saíssem nadando ali mesmo. Um dos amigos trouxe as famigeradas bolsas, e duas delas realmente voltaram, para delírio da fila. É incrível como, em alguns momentos, o ser humano age como qualquer animal quando está em bando. Desta vez, admito, foi divertido.

Mas a batalha ainda não havia acabado. As outras duas bruacas fizeram de conta que não era com elas, e ficaram exatamente atrás de nós. “É muita cara de pau, hein?”, emendou alguém. As songamongas fizeram questão de incorporar o rótulo, cantando exatamente o verso de uma música sertaneja com esse nominho. As manifestações continuavam. “Essa aí de boné azul tá furando fila!!!”. O que fez a feiosa? Tirou o boné! Novo coro com pinta de meme, concebido pela Turma do Nemfú: “Tem medo mas não tem vergonha!”.

Logo alcançamos a catraca principal. Foi a deixa para o Narazaki dar o tiro de misericórdia.

– Olha, essas duas aqui, essa de preto e a de boné azul, furaram fila. As duas. Agora vocês decidem se elas entram ou não. Eu fiz a minha parte.

E elas não brincaram. Pior, foram tirar satisfação conosco, na saída. Como se a culpa fosse nossa. Uma das zebras perguntou:

– Gostou? Agora me diz, o que você ganhou fazendo isso?

Com sua classe peculiar, Narazaki respondeu:

– Eu não ganhei nada. Mas vocês também não, e isso é o que importa.

Naquele instante, as risadas vieram com facilidade. E nem mesmo a chuva que veio depois apagou nossa alegria em derrotar as quatro caras-de-pau. Só depois veio a sensação incômoda. Independente da reação em cadeia positiva das multidões, essas cabeças que realmente acham a coisa mais natural do mundo desrespeitar uma fila estarão amanhã ou depois na Internet, com totais condições de registrar histórias assim. Vou mais longe: conseguirão reunir uma porção de medíocres do mesmo calibre.

A sensação incômoda piorou quando constatei que esse povo já vota.

André Marmota dialoga muito com o passado, cria futuros inverossímeis e, atrapalhado, deixa passar algumas sutilezas do presente. Quer saber mais?

Leia outros posts em E eu, uma pedra. Permalink

Comentários em blogs: ainda existem? (17)

  1. Lição de cidadania ou não, elas tem muito mais que eu. Mais que é se fu***!!!

    Quem não entende o conceito de fila, FIFO e afins, tem mais é que ser relegado ao ridículo que as 4 foram expostas.

  2. É até estranho comentar qndo vc faz parte disso, apesar da diversão, de toda a empolgação, acho que de certa forma “conseguimos” mostrar que educação existe.
    Pena que 90% dos presentes da fila com certeza não lembram mais disso…

  3. O pior é a famosa furadinha de fila pra “perguntar alguma coisa”. Acontece em banco, teatro, cinema, rodoviária, todo mundo sempre tem algo pra “perguntar”…

    Parabéns pelo julgamento romano dado a essas aproveitadoras!

  4. Palmas (clap,clap,clap) e mais palmas (clap,clap,clap)……
    Coisa linda também foi um dia na Rodovia Fernão Dias, uns caras ultrapassando pelo acostamento. Havia uma curva lá na frente com a polícia de tocaia, parando os espertos….
    Parabéns pela atitude.

  5. Sim… é das coisas que mais me indignam… gente que USA pai e mãe velhinho pra furar fila e sai rindo da cara da gente com ar de vitorioso…
    Às vezes nós damos com os ombros e “deixamos pra lá”, afinal, fazemos nossa parte e é isso que importa e blá blá blá… mas pra certo tipo de gente é preciso uma lição sim! Por isso adorei a ação da Turma do Nemfu… (a fotinha do Sabbath é ótima!)
    Bonzinho é uma coisa, otarinho é outra. 😉

  6. Putz!!
    Muito loco!!

    Imagino a cara das figuras… hahaha…

    Odeio que furem fila, mas quando vejo que realmente tem outras pessoas junto mais na frente, costumo amolecer… :S

    Ah! Me passa o blog do Narazaki, por favor, sim? Brigadim!

Vai comentar ou ficar apenas olhando?

Campos com * são obrigatórios. Relaxe: não vou montar um mailing com seus dados para vender na Praça da República.


*