2008, o ano em que Papai Noel plagiou Quintana

Tradição é tradição, e vice-versa. Como nos últimos cinco anos, o bom velhote batuta aproveita sua turnê pelo globo terrestre, arrastando seu saco, para enviar um e-mail para mim. Pelo horário da mensagem, dá pra ver que, ao contrário dos anos anteriores, o balofo vermelho disparou esta correspondência a bordo de seu trenó, ao lado de suas inseparáveis renas. Pior: o barbudo flácido acha mesmo que ignorei o presente que ganhei ano passado e… Pasmem: surrupiou versos inteiros do meu poeta predileto para formar parágrafos inteiros! Francamente, que vergonha, Noel…

— original message —
From: Papai Noel <santaclaus@laponia.gov>
Fecha: 25/12/2008 04:39:12
To: André Marmota <uma@igualaquinzequilos.com>
Subject: Natal com Quintana

Ho, ho, ho! Adivinhe quem é, meu garotinho?

Mas que final de ano mais xexelento em seu lar, rapaz. Não encontrei aquelas lampinhas formosas na garagem, sequer uma árvore enfeitada na sala. Sabe, decidi aproveitar essa feliz onda contra o consumo depravado e não deixei presente nenhum para você. Contente-se com esta carta. Afinal, quem foi que disse que eu escrevo para as elites, para o bas-fond? Eu escrevo para a Maria de Todo o Dia, para o João Cara de Pão. Para você, que está com este jornal na mão, e de súbito descobre que a única novidade é a poesia. O resto não passa de crônica policial-social-política. E os jornais sempre proclamam que “a situação é crítica”… Mas eu escrevo é para você, João e Maria, que quase sempre estão em situação crítica!

Até porque, aquele livro com a obra completa do Mario Quintana, que entreguei há um ano, continua no mesmo lugar da estante. Sendo assim, Quintana é o seu presente, de novo. Provavelmente você ainda não sabe exatamente o que é um poema – chama-os, inclusive, de poesia, ora! Um poema não é para te distraíres, como com essas imagens mutantes de caleidoscópios. Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe. Um poema não é também quando paras no fim, porque um verdadeiro poema continua sempre. Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.

Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente… E não a gente a ele! São pássaros que chegam não se sabe de onde e pousam no livro que lês. Quando fechas o livro, eles alçam vôo como de um alçapão. Eles não têm pouso nem porto; alimentam-se um instante em cada par de mãos e partem. E olhas, então, essas tuas mãos vazias, no maravilhado espanto de saberes que o alimento deles já estava em ti.

Sabe, no fundo eu entendo esse ritmo de vida, longe da poesia. O poetinha também achava que a vida é louca. A vida é uma sarabanda e um corrupio. A vida múltipla dá-se as mãos como um bando de raparigas em flor, e está cantando em torno de ti: “como sou bela, amor! Entra em mim, como em uma tela de Renoir enquanto é primavera, enquanto o mundo não poluir o azul do ar! Não vás ficar aí, como um salso chorando na beira do rio…”.

Ao mesmo tempo, sua desatenção com as questões natalinas, com os livros e com a sarabanda da vida reflete em seus atos. Aqueles problemas da gente, onde o pior é que ninguém tem nada com isso. Eu também nada entendo da questão social. Eu faço parte dela, simplesmente… E assim como você sei apenas do meu próprio mal, que não é bem ou mal de toda a gente. Nem é deste Planeta… Por sinal, que o mundo se lhe mostra indiferente! E enquanto o mundo em torno se esbarronda, vivo regendo estranhas contradanças no meu vago País de Trebizonda (pensavas que era o Pólo Norte?). Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças, é lá que eu canto, numa eterna ronda, nossos comuns desejos e esperanças!

Mas tudo bem, meu jovem. Eu entendo que, diante desse turbilhão de sensações, o maior dos desejos é manter a calma. Tão bom viver dia a dia… A vida assim jamais cansa. Viver tão só de momentos como estas nuvens no céu. E só ganhar, toda a vida, inexperiência… Esperança… E a rosa louca dos ventos presa à copa do chapéu. Quintana também dizia: nunca dês um nome a um rio, sempre é outro rio a passar. Nada jamais continua, tudo vai recomeçar! E sem nenhuma lembrança das outras vezes perdidas, atire a rosa do sonho naquelas mãos distraídas…

Sim, eterno gorduchinho. Não tem como lhe presentear com poemas sem falar em amor. Se eu amo o meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante? Essa é a questão: o amor pode ser como um fio telegráfico da estrada aonde vêm pousar as andorinhas. De vez em quando chega uma e canta (não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!). Canta e vai-se embora. Outra, nem isso. Mal chega, vai-se embora. Teve uma que passou e limitou-se a fazer cocô no seu pobre fio de vida, lembra?

No entanto, o amor é sempre o mesmo. As andorinhas é que mudam. E esse é o segredo do amor: buscar a andorinha mais distante. Se as coisas são inatingíveis… Ora, não é motivo para não querê-las! Que tristes os caminhos, se não fora a presença distante das estrelas! Quem ama inventa as coisas a que ama, e talvez ela chegaste quando tu sonhavas. Então de súbito acendeu-se a chama. Era a brasa dormida que acordava! O amor é quando a gente mora um no outro.

Pausa para um rápido comentário: o leitor que Quintana mais admirava é aquele que não chegou até a presente linha. Mas sim aquele que, neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.

Onde estava? Ah, sim, o amor. O amor chegou quando tu sonhavas. Um ritmo divino? Oh! Simplesmente o palpitar de corações batendo juntos e festivamente. Ou sozinhos, num ritmo tristonho… Ah, o seu grande amor distante, nem sabem o bem que faz haver sonhado… E ter vivido o sonho!

E sonhar é acordar-se para dentro: de súbito me vejo em pleno sonho e, no jogo em que todo me concentro, mais uma carta sobre a mesa ponho. Mais outra! É o jogo atroz do Tudo ou Nada! E quase que escurece a chama triste… E, a cada parada uma pancada, o coração, exausto, ainda insiste. Insiste em quê? Ganhar o quê? De quem? O meu parceiro… eu vejo que ele tem um riso silencioso a desenhar-se numa velha caveira carcomida. Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce… Como também disfarce é a vida!

A vida é curta, por isso ame. Mas faça-o baixinho. Não grite de cima dos telhados, deixa em paz os passarinhos, a mim! Se realmente a queres,
enfim ….. tem de ser bem devagarinho ….. amada ….. que a vida é breve ….. e o amor ….. mais breve ainda. Não consultem os relógios. Porque o tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida – a verdadeira – em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira. Essa vida eterna, somente por si mesma, é dividida: não cabe, a cada qual, uma porção. E os Anjos entreolham-se espantados quando alguém – ao voltar a si da vida – acaso lhes indaga que horas são…

Antes de terminar, um último recado para o seu ano novo: neste mundo, que tanto mal encerra, não basta saber amar, mas também saber odiar. Não só servir a paz,mas também ir para a guerra. Seguiremos assim o próprio exemplo de Jesus, que tanto amor pregou na Terra, quando Ele, que num ímpeto de cólera, a relhaço expulsou os vendilhões do templo!

Bom, meu nobre apaixonado por Quintana, vou desconectar aqui. Aproveite que o ano novo ainda não tem pecado: é tão criança… Vamos embalá-lo… Vamos todos cantar juntos a seu berço de mãos dadas, a canção da eterna esperança. Agora – que desfecho! – Já nem penso mais em ti… Mas será que, a cada ano, nunca deixo de lembrar que te esqueci?

Feliz fim de Natal! Ho ho ho!

Papai Noel
http://www.papainoel.com

Não tive tempo de checar, mas como não vi nenhum “um dia descobrimos…”, “quem não entende um olhar tampouco entenderá uma longa explicação”, “o segredo não é correr atrás das borboletas”, “deficiências”, “felicidade realista” e outros falsos Quintanas que circulam impunemente pela web… Isso quer dizer que o único deslize do gordão é a falta de criatividade natalina.

Comentários em blogs: ainda existem? (2)

  1. Grande André!

    Cara, eu não lia a palavra xexelento há uns 350 anos. HAHAHAHAHAHA

    Por isso adoro o Marmota. Leio e vou continuar a ler. Renovei a assinatura do feed para 2009. Espero que 2009 seja um ano longe de xexelento para todos nós.

    Abração e muito sucsso,
    Nelson

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