Se você tiver o Google Earth em seu computador, jogue as seguintes coordenadas: -31.8166, -52.7189. Navegue à vontade pelos arredores desse cantinho aparentemente inóspito do globo terrestre. Perceba que Pelotas, a “cidade grande” mais próxima, na verdade está bem longe dali. É naquele pontinho da zona rural, no Canto Grande (atual sub-distrito de Capão do Leão), que minha mãe cresceu ao lado de seus seis irmãos. Minha avó, que hoje completaria 91 anos, certamente ficaria feliz ao ver, lá de cima, ao lado do meu avô, a velha casa, as floreiras, o pátio de chão batido, o galpão, as vacas e galinhas, a cacimba (poço de água potável), os pés de bergamota (que talvez você conheça como mixirica ou tangerina), o açude abarrotado de lambaris e traíras… Enfim, tudo isso em ordem. Como há quarenta, cinquenta anos.
Como a família é enorme (os irmãos tem filhos, netos e pior, cunhados), esse é o tipo de sonho complexo de se realizar por razões internas, comuns a qualquer mortal que tenha algum parente. Não importa: vez ou outra meus pais comentam, em nossa “rodinha de chimarrão” matinal, o que seria de nós caso decidíssemos largar nossos afazeres urbanos e viver nesse cantinho, ou em qualquer outro que remeta as origens dos meus pais – um sonho antigo deles, ainda mais forte diante de um monitor exibindo um mapa cheio de recordações nas entrelinhas.
“Mas você está louco? Trocar as benesses oferecidas pela roda da fortuna paulistana, as oportunidades de crescimento profissional, as pessoas que formam seu networking pessoal e profissional… Tudo isso por um pouco de mato?”. Perguntinha muito pertinente. É óbvio que minha mente 100% racional responderia “não, fácil” num estalar de dedos. O simples valor que dou à minha família já faz esse tempo aumentar em alguns minutos (apesar da resposta permanecer a mesma). Mas a nossa reles condição humana prega alguns sustos difíceis de assimilar.
E não estou falando apenas nos triviais interesses mesquinhos envolvendo “donos” e “colaboradores”. Mesmo nesse mundo altamente profissional, ainda existe algum respeito entre os homens – ainda que seja falso, mas o suficiente para manter a harmonia no ambiente. Aquele pontinho distante na zona rural gaúcha fica ainda mais convidativo após alguns episódios violentos: todo mundo conhece alguém que já passou por algum furto bobo, assalto no farol, sequestro-relâmpago… Essas coisinhas bestas que, de tão corriqueiros, já não provocam a menor indignação.
Como ninguém dá bola ao próximo (afinal, temos tantas preocupações), somos obrigados a demonstrar nossa indignação (ou “cansaço”, como pede a moda) apenas em eventos de grande impacto – palavra infeliz para rememorar a tragédia de Congonhas, evento que fez mais barulho que as naturais (???) mortes em acidentes automobilísticos. Aliás, já tentou conversar tranquilamente com qualquer pessoa com as mãos ao volante?
E o que dizer de pessoas como eu, você ou aquela arquiteta, que foi ali no prédio vizinho depois do almoço ver como estão as coisas mas foi surpreendida por um animal, que trocou a vida dela por dois celulares… E quando foi abordado pela mãe da moça, usou sua cara de pau para mandá-la procurar hospitais ou IML. Como se dissesse: “Olha, dona, nesse mundo cão ninguém sobrevive. Abra o olho”.
Nessa batalha, existem dois ou três xiitas (“então levante essa bunda gorda da cadeira e tome uma atitude, vá à luta e não fique aí lamentando sem fazer nada para mudar essa sua vidinha medíocre”), cinco ou seis conformados (“ah, a humanidade está perdida, só nos resta aguardar o Juízo Final”) uns quinze ou vinte inertes (daqueles que só acordam quando a altura da lama chega ao pescoço) e uma multidão perdida (eu incluso), preocupados com um futuro incerto em busca da melhor resposta – vai dizer que não passou pela sua cabeça passar o resto de seus dias num canto onde nossas vidas valem muito mais, pescando, plantando milho e comendo bergamota?
Há 21 anos, meu marido e eu fizemos exatamente isso: deixamos a capital do Estado e fomos pra um pontinho remoto, onde supostamente teríamos tranquilidade. E foi lá que sofri meu primeiro assalto… hehehehe… tudo bem…
Ainda assim, prefiro morar fora dos grandes centros. É realmente muito mais tranquilo, em todos os sentidos.
Que susto! O interney blogs ficou fora do ar!
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Porque os posts saudosistas sempre terminam com duras críticas aos dias de hoje?
não só passou, como ainda passa. enquanto passeio, os Severo me aguardam no Alegrete.
Belíssimo texto.
Me faz gostar mais de Poá, embora não tenha tanto mato assim…
Quando você escreve esses posts assim, fico com os olhos rasos dágua. Lembro-me da Tijuca onde morei na casa da minha avó, terra do Salgueiro GRES, das matinês no primeiro domingo do mês de Tom & Jerry.
A Tijuca não era bucólica mas era tranqüila. Por quê criticam os dias de hoje? Indubitavelmente estamos superpopulados. Apesar de avanços em estudos de planejamento urbano, mal se podem conter os avançoa espontâneos do povo em busca de casa e trabalho nas grandes cidades.
A que horas sai o lirismo da sua cabeça tão ocupada com outros temas?
Muito bom o texto. Ótimo encontrar um pouco disso no meio dessas discussões (a maioria apologistas) sobre blogs, blogs, blogs. Afinal, a gente tem a vida pela frente também – essa, de carne e osso, de ter uma família, de querer segurança, um pouco de sossego, saúde, comer uma bergamota, hehehe. Abraço