Mesmo estabelecendo minhas bases num ponto inóspito da capital, nunca me senti afastado do mundo. No final dos anos 80, época em que só sabia ir “pra cidade” a bordo do ônibus executivo da CMTC, descobri que era mais barato caminhar até a estação de trem, ficar de olhos bem aberto nos arredores da falecida estação Engenheiro Trindade e desembarcar no Tatuapé. Sem falar nos coletivos que levavam mais de uma hora para desembocar na Vila Matilde ou no novíssimo Terminal Itaquera.
Então, nos primórdios dos anos 90, frequentava a ETFSP (atual CEFET-SP), com aulas a partir das sete da manhã. Mesmo no último ano, com aulas apenas à noite, continuava madrugando, já que meu primeiro emprego foi no IPT, na Cidade Universitária. Aliás, até o terceiro ano da faculdade de jornalismo, continuava atravessando a cidade de leste a oeste. A redenção chegou bem depois, a bordo do meu primeiro carro zero (um Mille ELX comprado num esquema louco de duas parcelas, uma agora e outra dali a alguns meses para fugir do ágio).
Os dez anos seguintes reafirmaram meus dois maiores parceiros de labuta: a Avenida Paulista e o caminho que a separa de casa. Ajudou muito o fato da minha cota “matutina xtreme” ter acabado na formatura: nesse período, descobri o quanto funciono melhor à noite, especialmente ao usufruir de horários fora do pico em meus deslocamentos.
Quem vive em São Paulo e contabiliza algumas horas de idas e vindas (algo como vinte anos, por exemplo) tem total convicção de que a coisa está cada vez pior. Não sei se é a idade, colapso urbano ou ambos. Mas em 2008, descobri que minha casa ficou ainda mais distante do mundo real. Entre os muitos percalços que corroboraram esse ponto de vista, o mais doído foi o 14 de abril, quando levei quatro horas para chegar à insuportável Vila Olímpia. Definitivamente, São Paulo estava me deixando ainda mais desmotivado.
Fico pensando em dar uma nova chance ao transporte sobre trilhos. Afinal, o aspecto grotesco da antiga linha variante do trem acabou em 2008 – precisa ver como ficou bacana a estação do Itaim Paulista, parece até o Metrô. Mas para chegar ao trabalho, eu teria que ir até o Brás, tomar o Metrô para Barra Funda, fazer uma nova baldeação até Osasco (!!!) e dali para a Vila Olímpia, totalizando mais de duas horas… Talvez o trajeto fique mais rápido no dia em que a “linha da cratera” funcionará, daqui uns… Mmmhhh… Enfim.
Voltando ao horror paulistano, mas antes que eu tivesse um dia de fúria, lembrei do antigo convite de um amigo. Ele herdou dos pais um amplo apartamento muito bem localizado, na avenida Nove de Julho. Mas para continuar morando ali, precisava de companheiros dispostos a compartilhar as despesas – que não são poucas. Na ponta do lápis, minha parte do rateio seria equivalente aos meus gastos semanais em combustível. E caso desse certo, trocaria algumas horas de engarrafamento por outras, fazendo qualquer outra coisa. Dormir mais, principalmente.
“Meu, eu topo a parada!”, anunciei ao final de maio. Na mesma semana, fui atrás de um colchão mequetrefe para oficializar a instalação – descobri que praticamente ninguém mais vende aquela espuma ensacada sustentada por um estrado de madeira. A onda agora é a tal “cama box”! Encomendei uma dessas, um travesseiro e um edredon. Assim que a encomenda chegou, transformamos o antigo escritório em minha trincheira semanal. Não bastava um simples agradecimento, nem mesmo pagar mensalmente os custos. Tratava-se de uma honra compartilhar um espaço tomado por toda sorte de livros, páginas que fizeram a cabeça do saudoso pai de meu amigo.
“Quero só ver até quando você aguenta essa história”, desdenhou minha mãe. Por razões evidentes: ainda que as horas no carro fossem perdidas, a compensação estava justamente na presença dela, organizando toda a minha vida. “Relaxe, mamãe. Considere que o apartamento da Nove de Julho é um acampamento. Sim, porque só estarei lá para dormir e acordar, entre segunda e sexta. Não vou conseguir sequer cuidar das minhas roupas!”. Não ria, vá. Estou admitindo minha incompetência doméstica com total sinceridade. Vou mais longe: graças ao contato permanente com minhas duas colegas de quarto, as inquietas gatinhas Nina e a Jade, nem minha mãe conseguiu lidar direito com minhas roupas.
“Mas nem comida você vai fazer?”. Outra pergunta óbvia. De fato, as habilidades que tenho nas questões elementares de administração doméstica parecem enormes quando comparo com meus dotes na cozinha. “Não vá encher o carrinho no supermercado de Ebicen!”, alertava minha mãe. Não cheguei a esse ponto, mas nos primeiros dias instituí a dieta do iogurte. No café da manhã, uma fruta (preferencialmente banana) e um copo de iogurte. No almoço, um daqueles pratos indiscriminados em qualquer self-service da Vila Olímpia. E antes de deitar e contemplar os sons da cidade no alto do 13º andar, mais um copo de iogurte.
Logo percebi que, caso prosseguisse, iria parar no soro. Assim, no decorrer das semanas, larguei a dieta do iogurte e passei a alternar o cardápio com outras opções rudimentares de alimentação. O bom e velho miojo, a boa e velha lasonha congelada (aglutinação dos termos “lasanha” e “bisonha”), a boa e velha pizza e, lógico, o bom e velho restaurante.
Tamanha inaptidão não tirou minha motivação para tentar algo que jamais havia feito em toda minha vida: ir trabalhar a pé. Devo dizer, com orgulho, que consegui driblar minha preguiça e persistir nas caminhadas por praticamente dois meses. E olha que, da altura do Carrefour Pamplona (onde largava) até as proximidades do Via Funchal (linha de chegada), temos cerca de uma hora de longas e ininterruptas passadas. Diariamente, experimentava um novo trajeto: Nove de Julho/São Gabriel ou Av. Brasil/Brigadeiro? Itaim via Juscelino ou Santo Amaro?
Lógico que, se nem os corredores exclusivos evitam os ônibus abarrotados, e nem as vias largas evitam os engarrafamentos, alguns cruzamentos e saídas tornam algumas avenidas impraticáveis para pedestres. Não é difícil constatar ainda: se a pé eu corro riscos diante da falta de respeito no trânsito, imagine se eu arriscasse o mesmo trajeto numa bicicleta? É uma pena, pois em pouco tempo conseguiria até imaginar uma maluquice casa-escritório. Como disse à Soninha, não demoraria uma semana para reunir condições de disputar a Volta da França…
Enfim, fui obrigado a reduzir drasticamente as caminhadas. Não foi preguiça, nem os calafrios e o estômago embrulhado após conciliar atividade física desintoxicante com a dieta do iogurte. Ocorre que meu período de reeducação levou um agradável baque em agosto. Cujos detalhes prometo contar a você depois do Natal.
Óia, três posts seguidos. Inédito no blog esse ano!!!
eheheh
Feliz Natal!
Nossa! Quanta história. rs. Eu também sofro com esse mau, o trânsito infernal de São Paulo.
Porém, faço algo diferente. Ando 45 minutos todos os dias, tomo um metrô e depois o Trem da CPTM para descer ali na Cidade Universitária, onde trabalho. É um processo penoso.
Abraços e sucesso!
Monthiel
Morar sozinho, sem os pais, tem suas desvantagens… mas tem obas vantagens, ao menos, pra mim.
“[…] meu primeiro carro zero (um Mille ELX […])”
Vulgo Marmoturbo?
“[…] o 14 de abril, quando levei quatro horas para chegar à insuportável Vila Olímpia.”
E eu pensando que o cúmulo havia sido quando levei 2h40 para voltar da Av. Ricardo Jafet (metrô Ipiranga) pro Butantã.
“[…] se a pé eu corro riscos diante da falta de respeito no trânsito, imagine se eu arriscasse o mesmo trajeto numa bicicleta?”
Que tal um patinete (de adulto)?
http://oqueijoeosvermes.wordpress.com/2008/09/28/sao-paulo-a-duas-rodas/
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