Existem inúmeros motivos para virar-se em direção ao Rio de Janeiro e torcer o nariz para os Jogos Olímpicos. Não é difícil concordar (ou mesmo aplaudir) quem tenta apagar a tocha, levanta um cartaz atrás da entrevista coletiva, instala uma faixa no saguão do aeroporto, orquestra uma salva de vaias durante a fala de algum figurão em um encontro oficial. É a hora certa de se manifestar, já que os holofotes do planeta estão apontados para a cidade.
Por trás dos megafones, há um evento centenário, onde as competições são motivadas por uma filosofia marcada pela valorização do esporte para todos, a integração e respeito entre diferentes culturas, formas e visões de mundo. Antes de ser um palanque para o amigo de Maricá oferecer cangurus ao invés de encanadores, estamos falando em uma reunião de atletas, treinadores e equipes que planejaram suas vidas para um grande momento de suas vidas. Pessoalmente, inspirado por estes valores, não consigo deixar de torcer por eles, por suas histórias.

Uma coisa não inviabiliza a outra. Nosso histórico recente, no entanto, indica uma propensão ao chute no traseiro do debate, proporcionado por um binarismo enviesado. Em outras palavras, é como se eu não tivesse o direito de valorizar o significado real das Olimpíadas e, ao mesmo tempo, identificar os erros e sentir vergonha alheia. O resultado é um embate boboca e improdutivo entre a “poliana” e o “grinch”.
“Mas entre aumentar as críticas sem sentido e zerar as críticas eu prefiro a primeira opção”.
Esse foi um dos momentos da conversa que tive com o Edney, incomodado com quem simplesmente ignora a crise e pensa apenas na festa. Perfeito, é preciso aproveitar a ocasião e lembrar da luta dos funcionários públicos de um estado falido, revelar a complexa e multifacetada divisão de uma cidade nivelada entre “zona sul” e o restante, a precariedade de serviços essenciais, enfim.
Agora, que tal um meio termo entre “críticas sem sentido” e “censura”? Quando a pauta permanente se confunde com as Olimpíadas por meio do discurso “quantos hospitais daria para fazer com o dinheiro das arenas” ou similares, a discussão pode se perder em broncas simplistas que direcionam o foco no “povo ranzinza que só sabe reclamar” – ou seja, enfraquecendo aquilo que, realmente, devia ser discutido. Ou, de uma forma ainda mais distorcida…
“Caguei pra esses atletas egoístas, que só querem saber de medalhas e ignoram nossas questões sociais. Espero que peguem zika, sejam assaltados ou qualquer coisa assim”.
Essa é uma reação possível à postura de esportistas como Megan Kalmoe, da equipe norte-americana de remo. Ela salienta: milhares de pessoas, incluindo voluntários, trabalharam para chegar a este momento – que, diga-se, poderia ser em Chicago ou Madri. E enquanto perde a paciência com a quantidade de reportagens negativas, completa: muitos críticos nunca se envolveram com o movimento olímpico ou mesmo com o Rio de Janeiro.
Óbvio que não é preciso ser carioca para se solidarizar com quem não gostaria de ver os Jogos em seu quintal. Mas usar o texto dela apenas para dizer “essa aí não se importa e diz para ficarmos quietos” é tão ingênuo e limitado ao diálogo quanto a torcida para dar tudo errado. Ignore a nacionalidade, os percalços (ou não) durante a preparação e pense: qualquer atleta sonha em participar em uma Olimpíada, independente de resultados. Que o diga meu personagem olímpico favorito, Eric Moussambani. Vai querer mesmo demonizar todos eles na esteira da sua bronca?
“Não seja burro. Esse papo de olimpismo já perdeu o sentido há muito tempo”.
Compreensível. Nem todo mundo ainda preserva sua “chaminha olímpica” – aliás, é bom que se diga, a tradição da tocha remete aos Jogos de 1936, aquele que Hitler esperava mostrar ao mundo a superioridade ariana. Aqui, sua imagem ficará associada à onça Juma, além de eventos exóticos. Curiosamente, eles parecem funcionar durante a passagem da tocha, mas não ao recusar cerimônias ligadas às religiões africanas em seu centro ecumênico – ou seja, nem toda diferença é boa.
O fato é que o revezamento, bem como outros eventos esportivos dentro e fora do contexto olímpico, acabam servindo aos interesses dos patrocinadores. Em “A Virada Olímpica”, o executivo de marketing Michael Payne celebra o fato de que, a partir de 1984, uma combinação envolvendo cotas de publicidade e direitos televisivos “salvaram os Jogos Olímpicos da extinção”. Isso porque a edição de 1976, em Montreal, deu um prejuízo que ainda é lembrado na cidade; e em 1980 o contexto da Guerra Fria culminou em boicotes que desprezaram a lógica da irmandade entre os povos.

Enfim, talvez o componente comercial seja o mais perverso, inclusive, na discussão sobre “a quem interessa uma edição dos Jogos em casa”. Também levanta outras polêmicas.
“Patrocinador não é bobo, vai investir onde o retorno financeiro é garantido”.
Pincei esta frase em uma explicação pertinente sobre a discrepância na premiação entre os atletas da Liga Mundial de vôlei masculino e seu equivalente para mulheres, o Grand Prix. Como destacou o Buzzfeed, o campeão do primeiro recebe cinco vezes mais; o melhor jogador da Liga fatura o dobro do destaque feminino.
Pois bem, a desigualdade entre homens e mulheres, associada aos interesses de quem associa sua imagem aos Jogos para ficar bem na TV é uma boa razão para criticar os Jogos. Mais do que isso: processos políticos que colocam Copa do Mundo e Olimpíadas no Brasil são regidos por rotinas suspeitas (como os Jogos de Inverno em Salt Lake City em 2002 ou mesmo os Mundiais de futebol da Rússia e Catar. Tem que ver tudo isso aí. Por hora, politicamente ou não, mesmo com boas razões para não gostar, 2016 é o ano do Rio.
“Nada disso importa. O que me deixa puto é esse ufanismo exagerado”.
Realmente incomoda, especialmente se o papo do “importante é competir” é relegado ao enunciado contemporâneo dos simplistas binários: “só quero estar entre os ganhadores, morram os derrotados”. É o princípio que movimenta, por exemplo, a indústria do doping. As matizes que envolvem as histórias de quem compete ficam perdidas no meio do espetáculo. Vão parar na mesma vala comum das críticas vazias e das perguntas que não são feitas, entre elas “como foi mesmo o processo de construção da Vila Olímpica” ou “como uma empresinha safada ficou responsável pela segurança”.
Novamente, é possível colocar isso na conta dos patrocinadores e dos direitos de transmissão. Se neste ano “somos todos olímpicos”, na última edição das Olimpíadas, quando a concorrente dos bispos detinha exclusividade na TV aberta, “éramos só um tiquinho olímpicos”. Nesse sentido, é fundamental se posicionar como quem deseja entender as razões por trás de qualquer fala e prestar atenção em vozes plurais e relevantes. Que tal revisar, por exemplo, o quadro de medalhas a partir de dados socio-econômicos?
“Como se não bastasse, ainda vem essa gente de fora, incluindo terroristas”.
De fato, imagina-se que desde 1972, com o atentado em Munique, há preocupação com segurança. Foi assim em Atenas 2004 – que, é bom afirmar, tem como parte do legado um parque olímpico transformado em depósito de refugiados. Mesmo em Londres, em 2012. Por conta disso, há uma “lei antiterror” em vigor no país – a mesma que prende o coió de Açoita Cavalo, mas pode criminalizar qualquer manifestante…
(Aliás, nota mental, preciso escrever um dia que meus pais se conheceram em AÇOITA CAVALO).
Mas deixe-me contar uma historinha sobre a última Copa do Mundo. Fui a Itaquera em uma quinta-feira para assistir a Coréia do Sul perder para o time B da Bélgica por 1 a 0 num joguinho ruim de lascar. Fui ao jogo vestindo uma camisa da Venezuela num critério meramente aritmético: dois “diabos vermelhos” é igual a uma “vinotinto”. Ao meu lado, além do Doni e seu pai, uma argentina (interessada em seu colega paulistano), dois mexicanos bons de papo, alguns belgas e praticamente todos os vendedores do stand center. Todos ali, na ZL, chutando bem longe a retórica nacionalista, elitista, seja lá qual nome queira dar.

Vai ter gafe? Mais tropeços? Críticas sem fundamento? Ofensas gratuitas? Certamente. Mas também vai ter Olimpíadas. E não há nada errado em comemorar por quinze dias, sem perder de vista as prioridades de sempre. Ainda mais, nas palavras da professora Lilia Moritz Schwarcz, num tempo marcado “por vários conflitos, pelo fim do sonho da comunidade europeia e pela emergência de tantos ódios e radicalismos. Inventada ou não, agora é torcer para que a tocha inflame nossa imaginação”.
Obs: Obrigado, Edney, por me fazer voltar a escrever aqui na mesma medida em que procuramos, imagino, pensar em como Julia e Joana vão fazer para separar informação do ruído.
É isso aí. Estou passando muita vergonha, mas vou torcer e comemorar.