Fiz uma coisa que estava querendo há tempos: a despeito de quem não gostou desse tipo de brinquedinho, investi parte das minhas parcas economias num Positivo Mobo, de onde escrevo estas linhas. Tenho certeza de que vai fazer diferença no meu dia-a-dia, especialmente para tarefinhas corriqueiras, apesar daquela sensação incômoda de ter feito uma compra perdulária (“o consumismo é o consumo depravado“).
Mas essa impressão de “gastança” ficou pequena quando percebi o tamanho do problema que criei. Tudo porque fiz essa comprinha na megasuperfuckingpowerloja das Casas Bahia, no pavilhão do Anhembi.
Absorvido pelo bombardeio da mídia e por um preço à vista convidativo, ignorei naquela noite um episódio triste, na estrada de Itapecerica, em 10 de novembro.
Alberto Milfonti Júnior levou a namorada e um amigo para comprar um colchão de casal as Casas Bahia, entusiasmado com a futura mudança: estava prestes a casar e mudar com ela e o filho, de cinco meses. Vestindo bermuda e chinelo, Alberto esperava perto da porta enquanto a namorada, na fila, fazia o pagamento. Subitamente, o segurança apareceu.
“Por acaso você tem algum parente parecido comigo?”, perguntou. Alberto disse que não, e ouviu algo como “é que você não para de me olhar…”. E começram a discutir. “Escute aqui, eu sou cliente. Eu comprei e paguei. Por que você está me olhando assim, me tratando diferente?”. Alberto ainda foi em direção à namorada para pegar a nota fiscal para prová-lo. Nesse interim, o segurança sacou sua arma.
“Você quer que eu atire em você?”. Surpreso, Alberto respondeu “Não, você não vai atirar…”. “Você duvida?”, retrucou. “Duvido”. Esta foi a última palavra de Alberto, antes de levar um tiro na cabeça.
A questão é delicada e vai muito além de uma simples abordagem mal-educada. Agora, ao analisarmos a história, é possível interpretar: a loja, ao contratar um profissional que tirou a vida de um pai de família, é responsável por esse crime. Sendo assim, fazer uma compra nas Casas Bahia é ser conivente com o crime, é desrespeitar a dor de uma família que vai passar este Natal e os próximos com essa ausência.
Ou seja: comprar um mini-laptop na megasuperfuckingpowerloja das Casas Bahia foi como ouvir minha mãe, durante toda minha criação, algo como “filho, não se envolva com drogas”. E mesmo que inocentemente, ir a uma boca-de-fumo. Pode parecer exagero, mas qualquer lugar onde pode-se levar uma bala – ainda que pareça inofensivo – é, na realidade, sinônimo de perigo e desrespeito aos valores humanos.
Antes que você concorde com essa idéia, é fundamental enxergar essa história pela maior quantidade possível de possibilidades. Vou me ater a duas delas – e deixo para você a tarefa de acrescentar as outras.
Para a primeira, pedi ajuda ao Danillo Ferreira, do blog Abordagem Policial. Ele se baseou nas declarações pinçadas nas reportagens sobre o caso para definir o episódio como “discriminação, homicídio doloso e psicopatia, não um acidente”. Vem daí minhas dúvidas. Como este cidadão trabalhava como segurança? E já que a maioria das empresas trabalham com serviços terceirizados, como garantir que situações assim não aconteçam? Com a palavra, o Danillo:
“Algumas profissões geram certa atração para indivíduos com algumas pendências psicológicas. Psicopatologias, melhor dizendo. Não é novidade a incidência de pedófilos entre os clérigos, ao tempo em que a profissão policial, ou de segurança, gera enorme atração para pessoas com certas frustrações. Cabe às polícias, e empresas de segurança, se prevenir em seu processo seletivo e em seus cursos de formação profissionais, no sentido de eliminar as possibilidades do ingresso desses indivíduos, ou da manutenção dessa personalidade patológica.
Isso passa por inúmeras variáveis: os psicotestes que são aplicados nos processos de admissão (onde geralmente os reprovados são admitidos por força de recursos na justiça), a detecção dessas características durante o curso de formação (tomando-se as medidas devidas para sanar o problema), a inclusão de disciplinas como direitos humanos na carga-horária dos cursos, o apoio emocional e psicológico aos policiais/seguranças, dadas as peculiaridades da profissão, etc.
Quando esses e outros mecanismos falham, eis que surge-nos casos como o que você me aponta. Mas uma coisa é certa: se todos, ou a maioria, dos mais de quatrocentos mil seguranças particulares brasileiros agissem como esse exemplo, estaríamos praticamente em guerra. Existem muitos esforços para sanar esses problemas, e a sociedade deve sempre fiscalizar para que homens que ajam assim sejam banidos da situação de seguranças”.
Repare que, só nesse aspecto, já dá pra ver incontáveis engrenagens que podem fugir do nosso controle e falhar. Aconteceu nas Casas Bahia, mas poderia ter sido em qualquer outra loja. E aqui já dá pra entrar na segunda possibilidade, que começa exatamente no meu encontro com a vendedora, no estande da Positivo.
Chamava-se Ana Claudia. Cabelos tingidos, óculos de armações fortes e perseverança. Sabia tudo daquele aparelhinho. O tamanho reduzido, a tela de sete polegadas, os dois gigas de memória interna, o processador de um giga, webcam e microfone integrados, Windows XP instalado… Perguntei-lhe sobre a presença dela naquele ponto da loja. Disse que era a primeira vez que participava daquele mega-esforço de vendas. Estava cansada, jamais atendera tanta gente em um único dia como nessa época. Mas apesar da exaustão, estava feliz por garantir um fim de ano gordo para sua casa.
Comprar naquela megasuperfuckingpowerloja dá um trabalho desnecessário: você escolhe sua compra num lado do pavilhão, caminha cinco minutos para pagar do outro lado, volta mais quatro minutos para o quiosque do crediário retirar a nota fiscal, atravessa o lugar até o fim para retirar a mercadoria, volta ao estande da loja para retirar seu brinde. Mas nessas idas e voltas, lembrei do Natal da Ana Claudia e de todos aqueies funcionários enlouquecidos. Certamente nenhum deles se sente ajudando uma instituição criminosa, pelo contrário. São trabalhadores, peças desse louco sistema assim como o Alberto Milfonti Júnior.
Sabe, normalmente a gente passa horas discutindo pequenos esforços para salvar o mundo, ainda que seja uma simples forma de tapearmos nossas limitações. Também questionamos acintosamente quem o faz por exposição gratuita ou simplesmente ignora ações sociais evocando qualquer desculpa…
Imagine se eu tivesse comprado meu Mobo no Magazine Luiza e, logo depois, divulgar aos quatro cantos um papel qualquer provando essa ou qualquer outra benevolência, porque é o melhor a fazer… É muito mais simples pintar a realidade como “certo” ou “errado” e rotular pessoas como “proativas” ou “ignorantes”, sendo que a gama de perspectivas é infinita. O desafio é reunir paciência, senso crítico e respeito ao próximo na hora de escolher as cores da realidade.
Meu irmão, minha mãe, meus amigos, todos disseram que comprariam nas Casas Bahia mesmo depois do que aconteceu ao Alberto.
Mas eu não. Porque eu projeto. Se fosse o meu pai que tivesse levado um tiro lá dentro, eu não compraria mais lá. Se fosse o homem que eu amo que tivesse levado um tiro lá dentro, eu não compraria mais lá. Então, em solidariedade ao filho e a mulher de Alberto, não vou até lá. Simples.
E te pergunto: e se fosse o seu pai no lugar do Alberto, André, você teria colocado os pés nas Casas Bahia?
Eu sei o que é passar o Natal sem meu pai. Dói. É um vazio mesmo se a casa estiver cheia de gente. Mesmo que eu tenha filhos, netos e bisnetos. Ele SEMPRE faz MUITA falta, em todos os dias.
Assim como o Alberto que era um homem de bem faz/fará para o filhinho dele que, ao contrário de mim, não terá nem a sorte de ter lembranças do pai, pois o perdeu aos cinco meses de idade apenas.
André, você tem razão. Realmente não dá pra ser um salvador de mundo de butique. Se fosse assim, em primeiro lugar você nem teria comprado o computador, já que ele foi feito em parte por crianças em condições desumanas na China (aposto que elas também não terão um Natal para ser lembrado). Depois, dificilmente sairia de casa, porque os exemplos de desmandos e desrespeitos a cada esquina são tantos que não cabem aqui nessa caixa de comentários.
É claro que o que aconteceu com o Alberto é uma tragédia. Mas o pior não é o fato de ter sido nas Casas Bahia ou em qualquer outro lugar, e sim a impunidade que sabemos que vai acontecer. E disso ninguém fala.
Abs
Estamos acostumados a uma moralidade absoluta, a uma ética maniqueísta, onde definimos arrogantemente os limites do bem e do mal. Pobres de nós! Antes, essa exatidão nos julgamentos serve para nos confortar, para que olhemos a nós mesmos para dizer: “sou justo, sou certo, sou ético, tenho caráter”.
O interessante da minha profissão é que esses conceitos muitas vezes são postos ao lixo. Imagine um estuprador que abusou duma menina de nove anos, e que está prestes a ser linchado pelos pais e parentes da criança. Eu, policial, chegando ao local do linchamento tenho o DEVER de salvar a vida do criminoso, mesmo com toda a ojeriza e repulsa que seu ato me inspira. Eis que nossa moral é posta à prova, nossa compaixão se relativiza, e a realidade, meu caro, nem sempre nos encaminha ao que nossa intuição determina.
Parabéns pela lucidez e obrigado pela referência…
O comentário do Danillo me lembra uma das inúmeras discussões que tivemos na disciplina de Ética. Enquanto a nossa moral pode ser maniqueísta, dividir o mundo entre “bem” e “mal”, uma ação ética se define a partir da reflexão.
O mais bacana de tudo isso é a multiplicidade de ações possíveis: podemos pensar em Anas ou Albertos antes de decidir. Toda escolha é válida, toda escolha é legítima, desde que se aceite as conseqüências.
Acho que você agiu com maturidade ao não se deixar levar por um simples boicote.
Por outro lado, eu gostaria de ver a Casas Bahia mais empenhada em dar suporte à família do rapaz.
De qualquer forma a idéia do boicote não deve ser desprezada no futuro, dependendo de como esse caso se desenrolar.